quinta-feira, dezembro 17, 2009

JOSÉ RÉGIO (1901-1969)


« Ser santo era a minha secreta e mais poderosa aspiração. Mas eu não conseguia ser santo, nunca o conseguiria! Era uma vocação sem dom.

(...)

« Falo da insuficiência ou fragilidade da minha vocação mística, ousando aqui a mais paradoxal das observações; a mais inconcebível das minhas contradições: pois do mesmo passo a sentia eu minha vocação suprema, - e ao senti-la tinha por secundária a vocação artística, - e não podia deixar de me reconhecer um místico deficientíssimo ou frustrado: Longos e frequentes eram os intervalos na minha vida religiosa, ou por longos períodos me acomodava eu perfeitamente com a minha quase indiferença, frieza ou secura perante as coisas divinas. Pouco dizem estas palavras do que pretenderia eu dizer, e nem o exemplo de Antero ( a quem, por vezes, recorria como a um companheiro de des-graça [sic] ) me chegava a parecer idêntico. “Preciso de Deus! Nasci para Deus!” gritava às vezes comigo, “mas não alcanço a graça...” E ao mesmo tempo que parecia inegável tal necessidade de Deus – não era esta tão premente que a ausência de Deus me não deixasse ir suportando a vida com relativa facilidade, às vezes com grata satisfação.
(...)

« Cumpre sabermos, e lealmente o declararmos, que místico é aquele que tem necessidade de um Desus que exista; com quem possa entrar em comunicação. Ou antes: místico é aquele que, não obstante todas e quaisquer suas dúvidas, tem a certeza ou experiência íntima de esse Deus. Podem os não-místicos acomodar-se com a sua ideia (pois afinal é uma ideia!) de um Deus incognoscível, incomunicável, inconcebível, e ridicularizar ou desprezar o pequeno Deus humano dos outros. E podem viver tranquilos e satisfeitos com o que supõem ser uma sua superioridade. Como poderia um místico viver tranquilo e satisfeito com isso? Para um místico, toda a sua vida mortal e toda a sua vida imortal, toda a sua felicidade terrena e toda a sua aspiração a uma felicidade eterna, estão implicadas na questão... E falando em necessidade, bem vejo como à primeira vista pareço dar razão aos que supõem os deuses inventados pelas necessidades dos homens; isto é: pela sua necessidade de protecção, de apoio, de recurso, - de apelo para uma Força que os abrigue contra os seus medos, para uma Inteligência em que descansem as suas perplexidades, para um Amor que os compense das suas decepções, para uma Eternidade que responda à sua vontade de sobrevivência... Ora sem dúvida, esta interpretação simplista, realista, psico-fisiologicista, do fenómeno religioso, - vê, do lado do homem e do ponto de vista psicológico, um aspecto da grande questão. A meus próprios olhos era eu bom exemplo da justeza parcial dessas vistas de não crentes. Como não ver-me eu próprio cheio de ignorância e medos, por esse lado necessitado de um Pai omnisciente e omnipotente ? Como não ver-me, além de isso, dotado de faculdades superiores mas incompletas, inquietantes, e que aspiravam a uma concretização delas numa Perfeição viva para além de mim, todavia comunicante ? Para um não-crente poderia bastar isto – e a isto se poderiam juntar outras observações – a justificar a invenção de deuses. Para um místico, mesmo tão dúbio, tíbio, imperfeito como eu, essa pobre psicologia parecia como realmente pobre, e até qualquer metapsíquica (como a metafísica) incipiente e jamais bastante. Aqueles explicadores eram descrentes de Deus, e crentes na sua pequema ciência. Eu cria em Deus mesmo não crendo; e até compartilhando, em certos momentos, de aquela “sua pequena ciência”.

(...)

« A mim me bastaria decerto a própria certeza íntima, subjectiva, da minha religiosidade. Com todos os vaivéns, flutuações, contradições, incoerências, ambiguidades, perplexidades em que me debatia, e procurei descrever ou sugerir em capítulos anteriores, - eu não podia deixar de crer. E se igualmente eu não podia crer, muito me inclinava a crer que apesar de tudo cria da maneira que me era possível ser crente. O crer-não crendo era portanto a minha posição ao mesmo tempo subterrânea e supraterrânea, obscura e sobrepairante. Esta expressão de crer-não crendo me parecia a que mais rigorosamente exprimia o meu caso. Que melhor testemunha ou prova poderia eu achar da minha vocação mística (ousava! ousava até pensar secretamente que da própria existência de Deus) que essa persistência da fé apesar da descrença ? »
[Itálicos do autor.]

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« O medo de não chegar a terminar esta obra, para mim de importância capital....», dizia o Poeta, quando em 1969 se dava pressa de terminar a sua Confissão dum Homem Religioso.

A obra principiou-lhe a “ferver” em 1947 (o ano da publicação de Benilde ou A Virgem Mãe) e começou a verter-se em expressão escrita no Verão de 1953. Retomou-a em 1960. Em 1968, já regressado em definitivo à sua Vila do Conde natal, determinou-se a rever e a colher completo o que tinha como “fruto maduro em seu espírito”. - «Calculara ter acabada a primeira redacção da obra em Abril de 1969. Escrevia com uma premência e ansiedade tais que parecia estar a prever o seu próximo fim» - como diz o íntimo amigo seu Orlando Taipa. Escrevia e reescrevia. Mas ainda nada do último capítulo da obra, que resolvera intitular “Religião para Sempre”, e que deixara para quando o resto do livro estivesse pronto para impressão. Seria o décimo capítulo, culminando a escada de nove, cujo primeiro era “O Meio Familiar” e o nono “A Vocação Mística”. Entretanto, escrevia um novo e longo “Posfácio” para a novel edição do seu primeiro livro de poesia - Poemas de Deus e do Diabo -, que ficou como uma final confissão literária dum homem escritor.

A 9 de Outubro, regressando do Porto, foi acometido por um enfarte cardíaco, e não mais pôde trabalhar. Assim ficou por assentar o fecho da abóbada dum livro de importância capital para todos nós. Mas os portugueses das Capelas Imperfeitas sempre confessaram saber Quem dá a última demão nas batalhadas obras humanas.

No In Memoriam que no ano seguinte amigos e companheiros de luta lhe dedicaram, o poeta Alberto de Serpa, o “camarada e amigo de sempre” a quem Régio dedicou o seu último livro de poesia – Cântico Suspenso (1968) -, escrevia esta...

LEMBRANÇA
Pouso a mão nas tuas. Que frias!
Que de marfim estão os dedos teus,
Como o Cristo que seguiu tuas finais agruras!

Não mais poemas que escrevias.
Agora, só os versos que vais dizer a Deus,
Medidos no rosário que seguras.