terça-feira, dezembro 01, 2009

UM RESTAURADOR D’A MANHÃ


É um dia; e, no céu amplo do desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.


« CM – E agora, Professor Agostinho da Silva, que irá ser o dia de amanhã para os portugueses ?

A.S – Do rectângulo da Europa passámos para algo inteiramente diferente. Agora Portugal é todo o território da língua portuguesa. Os brasileiros lhe poderão chamar Brasil e os moçambicanos lhe poderão chamar Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo a que Fernando Pessoa chamou a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora é essa a Pátria de todos nós.
Quando se diz ter Portugal de fazer alguma coisa, o que tem de ser feito sê-lo-á por todos os homens de língua portuguesa. A missão de Portugal, agora, se de missão poderemos falar, não é a mesma do pequeno Portugal, quando tinha apenas um milhão de habitantes, que se lançou ao mundo e o descobriu todo, mas a missão de todos quantos falam a língua portuguesa. Todos estes povos têm uma missão extremamente importante no Mundo.

CM- Desde séculos atrás existe a ideia de um Quinto Império. Agora, após a contracção do chamado Império Colonial, alguns esperam o início desse Império, a partir de Portugal. Qual a sua definição de Quinto Império ?

A.S- Não para mim, pois não inventei o nome, mas para o padre António Vieira e para Fernando Pessoa, o Quinto Império foi coisa perfeitamente definida e cada um o definiu da sua maneira.
Para Vieira, era o Império que viria após os quatro impérios que tinham falido. Mas tentar um Quinto Império após a falência dos quatro anteriores, só não seria uma ideia de louco – e o padre António Vieira não era louco – se evitassem a entrada, nesse Império, dos elementos culpados da ruína dos antecedentes.
Então não podemos pensar mais nenhum império em que haja qualquer doas “bactérias” políticas causadoras do desaparecimento dos antecedentes.

CM- Quais são, pois, essas “bactérias” tão perigosas, capazes de minarem até um império?

A.S – São, hoje, perfeitamente definidas, sendo a maior a mania do homem de mandar nos outros homens. Esta é a “bactéria” mais perigosa.

(…)

CM- Os portugueses poderão fundar um Quinto Império ?

A.S. – Os portugueses poderão ir para o Quinto Império se decidirem, em primeiro lugar, não ser imperadores. Este é o ponto essencial da questão. Paradoxalmente, apenas haverá um Quinto Império se não existir um quinto imperador…

CM- Portugal entrou para a Comunidade Económica Europeia, facto apoiado por uns e criticado por outros. Como vai a Europa de saúde ?

A.S.- A Europa, com tudo quanto fez, dando tanto instrumento ao mundo, e tendo Portugal transportado grande parte desses instrumentos para toda aterra, está esgotada. A Europa esgotou-se, fisicamente, porque levou toda a sua vida a realizar coisas, a pesquisar para saber, a saber para prever e a prever para poder. Mas as pessoas, a maior parte das pessoas do Mundo – isto acontece com oito em dez homens – não são dessa zona europeia ou euro-americana.
Toda essa gente tem outros ideais que não são os do Poder sobre os outros, nem os do Poder sobre si próprios. A sua ambição não é o Poder mas, fundamentalmente, o Ser. A Europa esgotou-se no Poder e temos, agora, de partir para outra fórmula, que é cada homem ser aquilo que é. Para isso teremos de mudar, muitas vezes, as próprias estruturas do Homem, e é por isso que estão avançando as ciências e as técnicas médicas. Temos de avançar para modificar, radicalmente, todas as circunstâncias em que até hoje tem vivido o Homem.

CM- Poderia o Homem ter vivido de outra forma ?

A.S. – Não existia outra maneira de viver. Era esse trajecto que havia para cumprir. Mas agora temos à nossa disposição o saber científico e as técnicas necessárias para modificar tudo isso, e modificá-lo radicalmente, dando a liberdade a todo o homem de ser aquilo que ele tem de ser: um criador sem nenhuma espécie de inibição.

(…)

CM- Como poderão os portugueses contribuir para esse tipo de mudança ?

A.S.– Os portugueses levaram a Europa ao Mundo, mas agora todos aqueles que falam a língua portuguesa têm o dever de trazer o Mundo à Europa.
E espero que tragam esse Mundo, tão diferente da Europa, que não deseja aniquilar a Europa, como muita gente supõe, mas, isso sim, humanizar essa mesma Europa, restituir-lhe aquela força interior e aquela capacidade de imaginação por ela perdida, por só imaginar num determinado sentido, por se restringir a um cero campo. »


[ A entrevista pode ser lida inteira a páginas 125-132 dos Dispersos, organizados por Paulo Alexandre Esteves Borges, em 1988, para o Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Permito-me ressalvar por minha conta, dois ou três rápidos pontos, entre outros que mereciam detença.
Primeiro, não há que pôr ênfase na “língua portuguesa” que inda reconhecidamente falam e escrevem os rendidos assinadores de pactos (embora deficientes, só eficientes na linguagem da propaganda). Contando que evolua no mundo para formas bem diferentes desta que hoje já nem conseguimos capazmente ensinar aos nascidos aqui, eu prefiro falar em cultura e espírito lusíadas.
Segundo, tudo está no “temos de avançar para modificar, radicalmente todas as circunstâncias em que até hoje tem vivido o homem”, que o leitor prevenido confrontará com o sobredito a propósito de Orwell e Huxley. E não lhe terá escapado o seguinte. Por um lado, a “Europa esgotou-se no Poder”, mas “estão avançado as ciências técnicas” e “temos à nossa disposição o saber científico e as técnicas necessárias”. Pergunta-se: estão avançando para nos libertar do Poder e libertar o homem ou para multiplicar este Poder a uma potência que nunca teve antes no mundo ? Mas, se há tanto a esperar das ciências e técnicas, tão “necessárias” e tão europeias, o que é que de verdadeiramente “tão diferente” o mundo podia trazer à Europa ? Será que para a “força interior” e a “imaginação” humanizadoras do euro-americano robotizado a tecnociência é necessária?... Aqui, por insuficiente reflexão sobre a natureza e capacidades destas ciências e técnicas, e por um excesso de optimismo relativamente à natureza e capacidades dos humanos para lidarem com elas e o “tempo livre” de cada vez mais desempregados e ociosos, parece-me que Agostinho da Silva cometeu um grande e fatal erro.
Terceiro, o leitor dos anteriores e seguintes postais que venho dedicando ao poder social e político também terá notado essa “mania de mandar um homem nos outros homens”, e a afirmação capital: - Haverá um Quinto Império se não existir quinto imperador. Como é que isso será possível, quando a tecnociência coloca uma minoria muito restrita na situação de nunca tão poucos terem tido tanto poder sobre tantos e a própria ecologia do planeta… - é o problema que nos fica. ]