CONTRATUALISMO POLÍTICO: UMA POSIÇÃO ORIGINÁRIA
« Se tivermos em conta que todos os homens são aproximadamente iguais em força física, e mesmo em poder e capacidade mental, antes de cultivados pela educação, teremos necessariamente de admitir que só o consentimento de cada um poderia, ao princípio, levá-los a associarem-se a qualquer autoridade. O povo, se remontarmos à primitiva origem do governo nas florestas e nos desertos, é a fonte de qualquer poder e jurisdição; voluntariamente, para bem da paz e da ordem, os homens renunciaram à sua liberdade natural e acataram leis ditadas pelos seus iguais e companheiros. As condições sob as quais se dispuseram à submissão, ou foram expressas, ou eram tão claras e óbvias que se poderia perfeitamente considerar inútil exprimi-las. Ora, se é isto que se entende por contrato original, é inegável que todo o governo assenta, de início, num contrato, e que as mais antigas e toscas associações humanas se constituíram essencialmente em virtude desse princípio. »
Tal é em simples e sumária versão a teoria contratualista exposta por David Hume nos seus Ensaios Morais, Políticos e Literários (1748), que o leitor já tem hoje disponível em tradução portuguesa de João Paulo Monteiro, Sara Albieri e Pedro Galvão. Mesmo este filósofo tão criticamente alerta e inclinado ao cepticismo não escapou ao grande mitema que repassou boa parte do pensamento político do século XVIII, para se prolongar ainda nos romantismos políticos do XIX, quer o passadista e reacionário à Revolução francesa, quer o revolucionário e progressista. Mas David Hume não o acolhe sem reservas: se aceita como bom e “real” um pacto original, deixa-o na noite dos tempos e das “mais antigas e toscas associações humanas” nos desertos e florestas; pelo contrário, relativamente ao poder político nas sociedades e governos actualmente existentes, não vê nas suas origens mais do que “usurpação ou conquista”.
De um ponto de vista estritamente político, e sem as tintas ambientalistas de um “estado natural”, sabe-se que as teorias contratualistas modernas têm origem nos desenvolvimentos do pensamento aristotélico-tomista levados a cabo por grandes mestres jesuítas como Francisco Suarez (e os Conimbricenses da nossa Universidade de Coimbra, onde ele ensinou). – O princípio de todo o poder político ordenador dos Estados para a justiça e bem comum do povo está em Deus, e o soberano temporal é investido desse poder pela comunidade civil, que pactua sujeitar-se ao poder do soberano enquanto esse poder é exercido segundo a justiça e para o bem comum de todos. De aqui a justificação da revolta e do tiranicídio ( já encarados por S. Tomás de Aquino), se o soberano traísse o Pacto sancionado por Deus e pela “lei natural”, e pervertesse esse poder divinamente ordenado à satisfação da justiça e do bem comum. Sabe-se também como os teóricos do “regalismo” e do “poder absoluto” dos reis vieram a contestar esta doutrina ( o poder político vem directa e imediatamente de Deus para o Príncipe, que o detém livre e solto, absolutus, de qualquer Pacto pelo qual fosse apenas mediata e condiconalmente investido); e está precisamente aqui um dos motivos das acusações do nosso ditador Pombal aos jesuítas, como “sediciosos” e minazes da “real majestade” dos soberanos.
Face à posição naturalista, que tenho apontado nos últimos postais (e que retocarei no próximo), a resposta contratualista ao problema da justificação do Estado é descabida e impertinente. Com efeito, parece óbvio que, se a relação política é sempre uma parte constitutiva intrínseca do sistema das relações sociais, como os pulmões ou os rins são partes intrínsecas dum corpo animal, - então jamais houve corpo social algum sem órgãos de algum sistema político. E não só nunca houve estado social sem ser ipso facto estado político, como seria da maior impropriedade chamar de “natural” a esse fictício estado pré-político.
Compreende-se que a concepção naturalista possa seduzir a razão: é simples, clara, consistente com tudo o que podemos observar com os olhos do etologista e naturalista biólogo ou dum primário senso comum. Mas a razão do filósofo será (presumo) mais exigente e prudente, a começar na tentação de cominar “sem sentido” o que foi dito “descabido” ou “impertinente”. – Há que dar razão de pelo menos duas coisas: primeiro, do porquê de ter sido imaginado e pensado esse ficto “estado natural” instituinte dum “direito natural” pré-político ( ou supra-político); depois, se, como vimos, todos os regimes políticos não seriam mais que relativas e contingentes formas de cada sociedade, a cada momento, se ajustar o melhor que pode às condições do meio social e natural, - temos de explicar por que é que há uma tradição persistente de pensamento acerca de um “melhor” ou de um “ideal” regime político.
Quanto ao como é que ele pôde ser imaginado, convêm os historiadores da cultura numa influência certa, nos sécs. XVI a XVIII, das viagens de expansão e exploração ultramarinas das potências europeias. Uma peculiar influência notável já na maneira como o nosso Pero Vaz de Caminha e os nautas seus companheiros olham para os índios brasileiros na primeira comunicação que com eles tiveram, patente na célebre carta do “achamento”, de 1500 (« Assim, Senhor, que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria mais.... »). Era a imaginal influência do poderoso mitema do Paraíso terrestre. O que Pero Vaz não saberia, mas sabemos nós hoje, é que por seu lado os índios tupis e guaranis também alimentavam a recordação de uma Terra Sem Males (Yvy Marã Ei) e parece que, de facto, o mitema paradisíaco está tão universalmente espalhado quanto é também universal a experiência do sagrado e a instituição religiosa. Uma influência patente num dos eminentes jusnaturalistas de seiscentos – Samuel Pufendorf – e que se reflecte ainda em setecentos nas Lettres Persannes de Montesquieu e no état de nature de Rousseau.
Outras influências houve, por certo, e até de signo inteiramente contrário (Hobbes). Mas a que releva aqui dá razão suficiente para compreendermos o porquê dessa suposta ficção e a radicada permanência dum topos fundamental das teorias contratualistas da modernidade, até à tão influente Uma Teoria da Justiça, de John Rawls, no séc. XX. ( A original position e o veil of ignorance originário, nesta obra do filósofo norte-americano, revelam ainda a atractora permanência desse topos mitemático que, apesar de todas as projecções e perversões a que tem sido exposto no plano da nossa mortal existência espacio-temporal, sempre resiste à erradicação, como se fora inextirpável. Ainda Alex Hughes e Clinton Anchors, de 16 e 18 anos de idade, dois dos cerca de um milhão de púberes e adolescentes que fugiram – ou foram postos fora – das suas casas e vivem hoje solitários ou em bandos por todos os Estados Unidos, da mendicidade, das drogas e da prostituição, - que nome é que esses dois jovens se lembraram de pôr à cova onde pernoitam, a deslado dos rugidores camiões porta-contentores que lhes passam na interestadual, por cima das cabeças ? Como irónico e amargo endereço aos que ainda não há muitos anos viam o seu país como um vivo e potente farol da “liberdade” e do “progresso” para o mundo, e que nos anos 70 tinha aclamados scholars em Harvard a congeminarem sofisticadas “teorias da justiça”... Pois o nome que lhes ocorreu darem ao seu couto nocturno foi este: Paradise... E aqui os temos, nas florestas e nos desertos de asfalto, hoje como na noite dos tempos, os bandos de célibes e marginais que tanto ameaçaram como reforçaram os primeiros estados políticos, que foram as casas de família!... )
Explicado o que uma teoria naturalista, na versão esquematizada e actualizada que vimos no postal anterior, não parece ter recursos de razão suficiente para explicar, é altura de a confrontarmos com outra questão. – Se o topos de um “estado natural” pré-político, paradisíaco ou não, nunca existiu, e o sobreveniente pacto contratualista é dispensável, que função teriam estas ficções? - Neste ponto o naturalismo exibe uma apreciável capacidade acomodadora e explicativa, na condição de nos confinarmos ao jeito utilitarista da questão posta. É de lembrar que o cerne da teoria é o conceito de selecção natural. E a resposta segue, coerente: tais ficções têm a função útil de, num certo estádio da evolução histórica das sociedades humanas, fornecerem como que a superestrutura ideológica das crenças, atitudes e valores necessários ao ajustamento adaptativo dos grupos humanos às condições do ambiente social e natural. Isto é, coisas como Contrato entre sujeitos iguais e racionais; Estado de Direito; garantia de Direitos Humanos “naturais”; Democracia; Nações Unidas, etc., vieram a impor-se na modernidade porque eram agora ferramentas ideológicas úteis para adaptação e sobrevivência de certos grupos – e talvez até da inteira espécie humana – nas actuais condições da relação entre as sociedades e com a Natureza. E nada há a opor a que estas condições evoluam mesmo no futuro para que o Contrato e os Direitos Humanos envolvam todos os povos da Terra numa kantiana “Paz Perpétua” entre as nações, que é a mais razoável (racionalista) aproximação concebível ao mítico estado natural paradisíaco.
Mas suponha agora o leitor que as “ferramentas ideológicas” da modernidade e triunfantes do séc. XX tinham sido precisamente as contraditórias e antagónicas das citadas. Acontece que a teoria naturalista acomodar-se-ia igualmente bem, na mesma: não esqueçamos que, em cada momento histórico, é naturalmente seleccionado o regime social e político que serve melhor à adaptação e sobrevivência do grupo, e rejeitado o que não serve. Ora, uma teoria que acomoda tudo, tanto A como não-A, não explica nada; e é de todo incapaz de justificar por que é que seria, e seria sempre, moralmente preferível (seleccionável) um regime protector dos Direitos Humanos a um contrário e violador deles. Pela simples razão de que o naturalismo sociobiológico é eticamente indiferente, e logicamente falacioso: o que se impôs e sobreviveu é “o melhor” porque... é sobrevivente!
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