quinta-feira, novembro 26, 2009

DA MATRICIAL ORIGEM DO PODER: UM ARGUMENTO FEMINISTA


« Faça um sistema social o que fizer, tem de ter um qualquer meio de garantir a segurança do relacionamento entre mãe e filho, pelo menos até ao ponto em que a criança adquire mobilidade independente e seja capaz de sobreviver com uma probabilidade razoável de chegar à idade adulta. »

Isto era o que os antropólogos Lionel Tiger e Robin Fox escreviam em 1971, e o senso comum aprova. Já em 1949 a antropóloga Margaret Mead dizia, por seu lado: « A dada altura no dealbar da história humana, surgiu uma qualquer invenção social segundo a qual os machos começaram a cuidar das fêmeas e das suas crias. » A “invenção” (imagino eu) deve ter-se robustecido com a fixação duma notável “descoberta”: a de um nexo estável de causalidade entre a relação sexual e seus efeitos na gravidez e no aparecimento de uma criança com traços semelhantes aos do seu único progenitor masculino. Eva deixava de ser admirada apenas como a “Mãe dos Vivos”, para passar a ser também a mãe dos filhos de um determinado homem. (Cf. na “Eva” bíblica o reconhecimento exarado no cap. 4, 1 do livro do Genesis, talvez a memória de antiquíssima tradição cultural advinda do “dealbar da história”.) E eis o que o “sistema social” tem em toda a parte: um conjunto de normas que regulam e reforçam as relações de parentesco, tal que os pais biológicos ou os irmãos da mãe “garantam a segurança do relacionamento entre mãe e filho”. É a institucionalização da “família”, nas múltiplas figuras sociais desta, das quais a família nuclear é (como já Claude Lévy-Strauss reconheceu) a mais comum na humanidade.

Mas eu tenderia a inverter os termos: falaria antes na necessidade social ( e natural-biológica) de garantir a segurança do relacionamento entre filho e mãe. Assim, o controlo e pressão sociais exercer-se-iam no sentido de levar a mulher (no interesse do grupo) a aceitar o que um mero “instinto maternal” seria por si insuficiente para garantir : a aceitação dos desconfortos e riscos da gravidez, e o nascimento de um filho não desejado. A história que citarei a seguir pode ser uma boa ilustração de como, mesmo em grupos pequenos, com robusta tradição cultural e controlo social apertado nesse sentido, - os reforços sociais se confrontam com um poder originariamente irredutível e soberano.

Uma jovem aldeã vivia sozinha e solteira em sua casa. Certa ocasião, em Novembro, pelo S. Martinho, era altura de ir à adega e provar o vinho, como manda o rifão. Já bem servida de castanhas e não menos de jeropiga, mandou-lhe a bem disposta natureza ir de companhia com o conterrâneo Armindo a um palheiro isolado, a provar de outra coisa. Arrependeu-se logo do mau passo, mesmo antes de se conhecer grávida. Mas nada disse, nem ao Armindo nem a ninguém. « Calada como um testamento, aguardou que o rapaz viesse falar-lhe a sério. Lá com palavrinhas de amor, não! Batesse a outra porta. E queria os banhos na igreja e o casamento em Janeiro. Sem lhe dizer, é claro, que ficara naquele estado... mas o cão só pensava na carniça. Quando voltou, trazia apenas o vício assanhado. E mostrou-lhe o caminho: - Para isso, vai às da Vila... » A proposta não agradou ao rapaz, que « fazia-se desentendido. Lá casamento, isso não era com ele. Tinha mãe, tinha as sortes, tinha a vida encalacrada »... e não se entenderam. Eis o Contrato, eis o Pacto, neste caso não contraído; noutros casos, assente pelas respectivas famílias desde a infância dos directamente interessados, como ainda hoje se dá no mundo. ( E depois de Abril de 74, em Portugal, ainda tive conhecimento de um caso destes, fora da etnia cigana!) Um pacto muitas vezes consumado pela força do rapto ou da violação, nas conveniências de consegir a satisfação de um desejo ou de uma vantagem. Na lenda romana do “Rapto das Sabinas” podemos ler um caso exemplar de como a pura força da violência pode estar nas origens da constituição existencial dum Estado político, e de como este remonta sempre originariamente às tensões da relação social básica entre homem e mulher. Mas, nesta relação necessária, falta-nos ainda a parte de maior razão suficiente - que é o domínio dos pais sobre os filhos. E cabe adrede lembrar o facto elementar à maioria dos senhores filósofos, que sempre o esquecem (vimo-lo na semana passada, com Hume) ou menosprezam: não nascemos homens e mulheres feitos, mas sempre crianças carentes e inscientes, de todo submetidas a um poder humano que é o maior pensável que pode ser exercido sobre outro humano, qual é esse tal a que o recém-nascido (ou um adulto em coma) está sujeito. Voltemos ao conto da jovem aldeã.

Teve ela artes de ocultar a gravidez aos olhos do povo. Certo dia de Agosto, « começara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiro aviso, resolvera partir. » Saiu de casa, caminho do alto da serra e duma aldeia do lado de lá, ao encontro duma amiga, a única pessoa que meteria no segredo « porque de todo não poderia governar-se sozinha em semelhante aflição. Em casa dela teria o filho. E depois... Depois... » Mas sucedeu que a hora lhe chegou no alto da serra, cuja encosta íngreme e suada num calor de cozer as pedras foi o calvário final dum calvário de nove meses. Aí, em meio dum total isolamento e duma natureza hostil, deu à luz um nado morto. Sepultou o seu segredo, e regressou à aldeia. O contador não nos diz o que aconteceria depois daquelas reticências que apôs a “depois”, se o filho lhe nascesse vivo em casa da amiga; mas a lógica do conto, o feitio da personagem e alguns discretos sinais, como a palavra “matar” (a sede), na penúltima linha, sugerem ao leitor o pior. O assunto do conto não é inédito, e o pior aconteceu e acontece muitas vezes, antes ou depois do parto. (E leio isto num jornal diário de 14 de Novembro de 2008: “ Os casos recentes de mulheres que mataram os filhos à nascença têm resultado sempre em penas suspensas. Em nenhuma situação o juiz aplicou uma pena efectiva às mães que cometeram tal acto. Tem sido entendido que uma mãe, estando no período pós-parto, tem a sua capacidade de discernimento diminuída”...)

A lição da história para o nosso assunto é simples, terrivelmente simples. O leitor lembrará que nalguns lugares da Antiguidade grega e latina era prática social aceita apresentarem-se os filhos recém-nascidos ao pai, que decidia sobre a continuação da vida deles. Mas, digo eu, anterior ao patriarcado social e político, à margem dele, depois dele, em todos os tempos e lugares, ontem como hoje, - sobrepõe-se a tudo o poder da mulher, que consegue dissimular a gravidez, auto-induzir-se o aborto, esconder ou confiar a outrem o filho que quer sobrevivente, ou matá-lo. ( Aliás, numa visão prospectiva, a superioridade do poder matriarcal sobre as contingências sociais do poder masculino, assume nos nossos dias de ensaio dos primeiros transplantes de úteros, com a tecnologia disponível, este cenário possível e não de todo implausível : pela clonagem reprodutiva as mulheres – e só as mulheres – podem ser... a raça única herdeira da Terra! ) Em suma, e com sumária simplicidade: o poder político é, radicalmente, o poder parental, e é um poder de vida e de morte. Mas, quanto ao poder parental , a senhoria originária da mulher parece que é parte superior à do homem. Este filho da mulher presume de facilmente emancipado de quem o pariu, mas que retoma a senhoria dele na doença e na velhice (é delas a administração e o trabalho nos “lares” para velhos) e, até, quando lhe dava às vezes uma morte “misericordiosa” (a das “abafadeiras”, como eram chamadas na tradição popular portuguesa). Entretanto, hipnotizado pelas miragens da estatura e da força físicas, o homem presume-se dominador da mulher ( mesmo do mundo!) e actor principal daqueles exibicionais torneios de poderio macaco a que chamam “política”... Já agora, vem a molde observar que parece estar aqui mesmo, na vácua vaidade de tais presunções, a raiz dos patentes embaraços que tiveram os poderes públicos (masculinos) em lidar com a questão do aborto, quando certas ideologias os obrigaram a confrontar a sério a questão. Quanto às mulheres mais e"emancipadas" das pressões sociais e controlos morais próprios do patriarcado político, essas não tiveram pejos de gritar publicamente o "direito" ao exercício da sua natural soberania num domínio exclusivo seu.

Eis o “argumento” feminista, que poderíamos designar bem como um argumento... filho da mãe, lembrando que até a biologia nos mostra a sobreminência da mulher: de facto, pelos cromossomas mitocondriais da célula ovular fecundada, herdamos mais genes da nossa mãe, somos todos mais filhos da mãe que do pai... E a tal ponto pode ir a origem natural do poder político, enquanto poder social radicado na casa familiar de que a mulher é “dona”.

O contra-argumento também não é argumento nenhum. Se o leitor é daqueles que afinam pelo decantada toada da “igualdade de género”, então deveria levar à paciência a minha reivindicação dum igual postal inteiro dedicado a um argumento a favor da... emancipação masculina. Mas quem na já distante juventude deu bons ouvidos a contos como “A Nova e a Velha” e “Do Filho do Matrimónio”, da primeira parte do Zaratustra, não tem voz para tais cantigas. Por seu lado, estes 25 a 27 aqui do velho Demócrito (que Sócrates e o nosso Diógenes não duvidariam acompanhar em coro) são relíquias de uma velha política, extinta nesta parte do mundo em que escrevo (e em vias de extinção no restante). Se se quiser, concedo que entre as premissas do argumento teria de contar com a vantagem de o homem estar menos fundamente plantado neste mundo que a outra cara-metade do humano; e que o símbolo natural da maior estatura e força físicas deve ser superiormente aplicado à primaz iniciativa do homem na reorientação da transida e transeunte condição de ambos neste mundo. Mas a conclusão do argumento e da moral da história teria de contar sempre com homens e mulheres ambos emancipados das teias naturalistas da “carniça” e do “vício assanhado”, como das aranhas psicológicas que vão entretecendo de geração em geração “guerras dos sexos” e outras; ambos conjugados e aplicados a coisas de mais consequência para a condição humana (e do mundo) do que as servidões da reprodução biológica e cultural. (Utopia nenhuma, caro leitor: tais homens e mulheres estão há muito entre nós!) Para o efeito, os esquemas da velha política de aldeia dos macacos são totalmente incompetentes e desastrados, e tanto mais desastradas quanto recicladas com habilidades engenheiras de “redesenhamento genético”... Veja o leitor onde põe os seus talentos e apostas e, sabendo que o jogo é de vida ou morte, julgo que verá aqui melhor em Baldung (do que em Nietzsche) de que lado é que está uma e onde estará a outra.


[ Os antropólogos Tiger, Fox e Mead são citados no cap. 5, “O Papel Especial da Mulheres”, da obra A Grande Ruptura, de Francis Fukuyama, na tradução portuguesa (2000) de Mário Dias Correia. Mas fique sabendo o leitor curioso que tal “papel especial” não tem nada a ver directamente com o assunto deste postal. Utilizei também extractos do conto “Madalena”, dos Bichos (1949), de Miguel Torga. ]