terça-feira, novembro 10, 2009

A JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO


« Pensa por momentos na tua própria sujeição política. Estás continuamente a ser sujeito a regras de que não és o autor - designadas por “leis” -, que te governam não apenas a ti, mas aos outros, que impõem, por exemplo, a velocidade a que deves andar na auto-estrada, o comportamento que deves ter em público, que tipo de acções para com os outros são permissíveis, que objectos contam como “teus” ou “deles”, e assim sucessivamente. Estas regras são impostas por determinadas pessoas que seguem as directivas daqueles que as criaram, definindo também punições para o caso de não serem cumpridas. Sabes ainda que se não obedeceres a estas regras, é bastante provável que sofras consequências indesejáveis, que podem ir de pequenas multas à prisão até (em certas sociedades) à morte.
« A percepção aparente que tens quando és governado é a de que não és subjugado nem coagido. Se não aprovamos que um homem aponte uma arma à tua cabeça e que exija que lhe dês o teu dinheiro, então porque havemos de aprovar que qualquer grupo ameace recorrer a multas, ou à prisão ou à pena de morte para que te comportes de uma certa forma, ou para que lhe dês o teu dinheito (que eles chama de “impostos”) ou para que lutes em guerras que eles provocaram? Será esta sujeição realmente permissível de um ponto de vita moral, especialmente porque os seres humanos precisam de liberdade para progredirem?
« Para responder a esta questão, é necessário pensar sobre a diferença daquilo que intuitivamente nos aparece como formas “boas” ou “más” de controlo. O controlo de um pai sobre o seu filho de dois anos é normalmente visto não só como permissível mas moralmente necessário. O controlo exercido por um homem armado sobre a vítima que raptou é normalmente visto como altamente censurável. Este tipo de controlo é considerado como moralmente injustificado – representa a violação dos “direitos” da pessoa coagida. Aquele é visto como moralmente justificado porque não é apenas consistente com os direitos da criança como até os torna possíveis. Mas o que distingue então formas correctas e incorrectas de controlo sobre os seres humanos? E se o controlo político é fundamentalmente diferente do controlo parental porque é que deve contar como um exemplo de “bom” controlo em vez de “mau” controlo? »

Neste trecho do livro Political Philosophy da filósofa norte-americana Jean Hampton temos vivamente enunciado o conhecido “problema da justificação do Estado”. Grande problema! De tanto vulto que, se o leitor deitar mão duma acessível Introdução à Filosofia Política, qual a de Johnathan Wolff, lá o verá enunciado logo na abertura do livro, e lá verá o autor, novente e sete páginas depois, ainda às voltas com a resolução dele. Mas...

... Se o leitor paciente leu quanto ficou nos postais anteriores a pretexto do naturalismo político aristotélico, já vê que o grande problema – não é problema nenhum! E lembrará que ficou patente um ponto de vista incompatível com a condição posta na última pergunta do texto de Hampton: nada de essencial diferencia o poder natural dos pais sobre os filhos, do poder “político” dos governantes sobre os governados. Eis uma coisa que deveria ser ainda mais evidente pela simples consideração histórica dos Estados modernos em que o poder “político”, mesmo nos mais respeitadores das “liberdades” e mais adversos ao totalitarismo, veio sempre mais e mais a chamar a si o controlo de todos os sectores da vida social, desde a economia (etimologicamente, não esqueçamos: o governo da casa/do lar), a educação, a saúde, etc.. O Estado tem-se feito tão providente e previdente quanto seria de esperar fossem os pais para os filhos. Como também vimos, não sairia muito do naturalismo aristotélico, que fala doutros animais “políticos”, quem sustentasse que, estando o essencial do fenómeno político nas relações de dominância-sujeição intra e inter grupos (independentemente do seu tamanho e da maior ou menor complexidade das relações sociais), - não haveria a este respeito nenhuma solução de continuidade nem diferença essencial nenhuma na evolução das sociedades humanas a partir das de outros primatas. Por isso, (1) em nenhum momento da história das sociedades humanas tal relação de dominância-submissão poderia não ter existido. E já agora, ampliando e actualizando a proposta naturalista, e em consideração da multiplicidade dos regimes (políticos) que tal relação tem assumido nos diferentes tempos e lugares da história social (e política) teríamos: (2) em cada sociedade, em cada momento histórico, é naturalmente seleccionado o regime que serve melhor à adaptação e sobrevivência do grupo, e rejeitado o que não serve. Adaptação às novas condições da vida social, que a mera renovação natural das gerações não deixa de produzir com o tempo, e às condições do meio ambiente físico do território ocupado ou a ocupar.

Isto posto, é fácil ver que teríamos respondidas ou abolidas as outras questões da filósofa americana: as formas “correctas” e o “bom controlo” são, a cada momento, as que têm uma função útil adaptativa; o contrário, para as “incorrectas”. Mais ainda. Se levarmos a sério a aplicação aqui duma selecção natural, poder-se-ia até pensar num mecanismo de auto-regulação homeostática que, a cada momento (momentos que, à escala da vida das sociedades, podem significar décadas ou séculos), vai automaticamente gerindo e ajustando atitudes e comportamentos dos indivíduos no interesse do grupo a que pertencem e que seria, em última instância o da inteira espécie humana. Então e o “ponto de vista moral”, de que fala o texto? Fácil: ou seria, como qualquer outro instrumento da “cultura”, uma ferramenta ideológica de reforço, no interesse biológico da espécie; ou seria uma impertinência sem sentido.

Permita-me o leitor eu insista numa concepção, qual esta naturalista, que , vista assim por alto e largo, tem apreciáveis motivos de simplicidade, clareza, coerência e é consistente com tudo o que podemos observar com os olhos dum etologista biólogo ou dum primário senso comum. Repare-se como ela acomoda bem aquela notável frase do texto de Hampton – “ A percepção aparente que tens quando és governado é a de que não és subjugado ”. Se o poder parental é o foro natural/social originário do processo de instituição do fenómeno político, tal processo confunde-se com o mais lato processo da socialização dos indivíduos, de que a família é, como todos reconhecem, um agente primaz. Assim como a criança não tem qualquer consciência de que está a ser enformada nos moldes culturais do grupo em que nasceu e lhe sustenta e protege a existência, assim também não tem (nem precisa de ter!) qualquer sensação de que é “subjugada ou coagida” pelo poder dos pais (ou dos mais velhos). É um longo e subtilmente pervasivo processo de interiorização dos hábitos da cultura social do grupo ( e o “hábito” é a “segunda natureza”, de que falava o mesmo Aristóteles). E é essa longa habituação ao domínio e acatamento da autoridade dos pais que psicologicamente explica que o indivíduo, mesmo já adulto e independente deles, transite com a mesma “naturalidade” para a obediência a outros indivíduos, supostamente representantes investidos de um poder “político”. Por mim, não sei que mais admirar: se a despreocupada facilidade com que homens feitos saem da tutela dos pais para a de outros adultos seus iguais; se a mesma facilidade com que uns poucos destes se arrogam competências e capacidades de tutela sobre milhões doutros seus semelhantes; se as “astúcias da razão” que investe os mandantes de delegados poderes supostos na nação ou no povo “soberanos”, armando os políticos de “legitimidade”... Contra Hegel, falaria Schopenhauer aqui antes de “armadilhas da Natureza”: as tais ferramentas ideológicas que, no animal humano, forneceriam post facto as razões precisas para justificar e conservar, no interesse da Natureza, o que à razão adulta poderia parecer dificilmente justificável. Como se sabe, uma das ferramentas ideológicas que os teóricos da política mais têm alegado é a teoria do Pacto ou Contrato constituinte do Estado político na vida social. Mas nós já vemos como o naturalismo acomoda facilmente isto: o famoso Pacto dos filósofos seria tão somente o contrato matrimonial de aliança entre grupos, mesmo apesar da consaguinidade próxima (as alianças matrimoniais nas Casas Reais europeias deram-nos até recentemente muitos exemplos).

Se a questão da justificação do Estado é assim para os naturalismos de vária casta uma questão descabida, já para o anarquista, como se sabe, é pertinentíssima. Como assim? A objecção comum do senso realista é demasiado conhecida e sempre inevitável. Mas, suponha o leitor que, num certo, grupo todos os seus membros agiam sempre de acordo com a famosa máxima da lei moral kantiana (“Nunca trates os outros apenas como meios ao serviço da tua vontade, mas sempre como pessoas que a tua vontade deve respeitar”); ou que noutro grupo todos as indivíduos agiam sempre de acordo com a máxima da divina lei cristã (“Ama a Deus sobre todas as coisas e cuida do teu próximo como gostarias que ele cuidasse de ti”). A questão impõe-se com toda a simplicidade: - nestas condições, para que era necessário um poder “político” ? A resposta impõe-se à razão adulta com iluminista clareza. Mas lá vem a objecção realista: de facto, nem todos os homens agem assim, longe disso. De facto. – Acontece, porém, que o “ponto de vista moral” não lida com questões de facto, mas sim de nível axiológico e normativo: não seria o melhor e o mais racional para os humanos o dever de agir assim?

Se o leitor concluir que o senso realista assenta mais num medo natural, e que o anarquista tem mais razão moral suficiente, muito me praz dizer-lhe que estou inteiramente de acordo. Contudo, o leitor e eu expomo-nos então à questão temível: - Por que é que os humanos, que deveríamos agir assim, não agimos de facto assim?... A questão deixa transparente que confinamos aqui com uma dimensão que é já transcendente ao político e, até, ao ético, para entrar na ontologia: o que nós somos, como existimos.

Dê-me o leitor uma boa resposta, e salva-se de eu lhe dar outro mau postal.

[O leitor pode encontrar aqui o resto do texto de Hampton, de que me servi, na tradução de Vítor João Oliveira, e outros textos interessantes ao assunto.
Beemoth e Leviathan, na imagem e numa aguarela de William Blake (1757-1827). ]