segunda-feira, novembro 02, 2009

ANIMAIS APOLÍTICOS


« A cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e o homem é por natureza um ser vivo político. Aquele que por natureza, e não por acaso, não tiver cidade, será um ser decaído ou sobre-humano, tal como o homem condenado por Homero como “sem família, sem lei nem lar”; porque aquele que é assim por natureza, está, além do mais, sedento de ir para a guerra, e é comparável à peça isolada de um jogo

Destarte continua Aristóteles a afirmação famosa que pus em epígrafe do postal anterior. Como vimos, a polis seria o “lugar natural” dos humanos chegados à madura consciência da dimensão pública-política da sua existência como animais sociáveis. E isso por uma evolução natural das unidades sociais mais elementares que seriam a família e a aldeia. A citação de Homero procura fazer valer um argumento por analogia: naturalmente destinado à cidadania na polis, um indivíduo sem cidade seria como se não tivesse família nem casa. Mas os não cidadãos, ainda no estado familiar ou aldeão, seriam “por natureza” desejosos da guerra e peças isoladas, sub-humanos ou sobre-humanos? Não parece. Poucas linhas adiante, o filósofo refere-se ao mesmo assunto:

« Quem for incapaz de se associar ou que não sente essa necessidade por causa da sua auto-suficiência, não faz parte de qualquer cidade, e será um bicho ou um deus. »

Temos pois que não escapou ao agudo e minucioso observador que era Aristóteles a existência de indivíduos que pareciam “por natureza” (individual) associais ou anti-sociais. Por natureza, sublinhe-se; parece não ter ocorrido aqui ao macedónio que o poderiam ser pelo hábito de relações difíceis ou infelizes que teriam bloqueado nos indivíduos a motivação para sociabilizarem com os congéneres humanos. Mas, que “natureza” seria essa? “Ser decaído” parece-me tradução inexpressiva e mal adequada do adjectivo phaulos, no texto grego, que significa: mau, malicioso, defeituoso; de pouco valor, insignificante, sem importância; leviano, frívolo, negligente; lerdo, estúpido. Sentidos vários recolhidos no termo latino vilis, que deu os nossos vil/vilão/vileza. Quanto a “sobre-humano”(kreitton), seria exagerado se não fosse a palavra theos (deus) que efectivamente é usada depois. Kreitton significa: o mais forte ou corajoso; o maior; o dominador; o mais vantajoso; o melhor, o preferível, o mais valioso. No 2º trecho há um retórico reforço desta antítese: teríamos uma besta fera ou animal monstruoso (therion) oposto a um ser divino (theos).

A natureza humana não seria inteiramente uniforme ou homogénea. A polis é a actualização existencial das possibilidades de florescimento da substância racional do homem, e frutificar em justiça numa sociedade bem ordenada. Bem ou mal ordenada, é uma sociedade em que mesmo os escravos, não sendo mais que ferramentas ou instrumentos animados, inteiramente na posse dos seus proprietários, Aristóteles explícita e claramente os declara como tendo uma natureza humana. Mas, fora da cidade-estado, a natureza humana tenderia para os limites extremos em que tocaria o ínfero bestial ou o superno divino. Temos aqui, uma vez mais, a aplicação dessa constante e fundamental tendência do espírito de Aristóteles para a valorização do mésson – o justo meio -, tão saliente na sua teoria ética e política.

Agora, se fixarmos a nossa atenção, não nos “incapazes de se associarem”, mas nos que “não sentem essa necessidade por causa da sua auto-suficiência (autarkeia)”, temos uma questão curiosa. A polis é, “por natureza”, a comunidade social mais capaz de garantir a “autosuficiência” aos indivíduos e, como diz Aristóteles nesta parte e contexto, a “auto-suficiência é simultaneamente um fim e o melhor dos bens.” Ora, esta autarkeia não é uma finalidade eticamente valiosa apenas para o Estagirita: pelo menos desde Sócrates, é um valor sobremaneira apreciado pelo universo dos filósofos, e das mais díspares escolas de pensamento, até ao eclipse da filosofia pagã na Antiguidade. Teríamos portanto que, “por natureza” ( e não “por acaso”) alguns indivíduos seriam capazes – à parte da polis - de actualizar em si um bem superior. Note-se que tal apartamento não tem necessariamente de significar distanciamento físico, embora não o impeça (como vimos aqui e veremos melhor ainda qualquer dia). Os casos do citado Sócrates, e do nosso Diógenes de Sinope, parecem-me típicos. Então, se só na polis e através dos benefícios da cidade-estado, os homens realizariam a sua racional humanidade, como entender a situação excepcional destes excêntricos, que teriam mais partes de um “deus” que da condição humana? Seriam apenas ocasionais erros da Natureza, excepções à norma, sem mais significado nem consequência?...

Consequências têm, decerto, como logo se vê no caso dos que não viveram apartados da cidade. E, se os exemplos de Sócrates e Diógenes são pertinentes, as consequências são de monta, e o ateniense sentiu-as na pele. Será que Aristóteles teria noção disso? Reconsideremos o trecho em epígrafe. – Fala-nos, primeiro, de “desejoso de guerra” (polému epithymetês não carece das demasias de “sedento”; e polemos também pode significar simplesmente oposição/confronto, sem belicosas violências). Teríamos então, do lado ínfero, os humanos quasi bestas feras, aqueles “monstros” que a literatura hodierna chama “psicopatas” homicidas e os “predadores”compulsos à violência sexual; no pólo oposto, teríamos um Sócrates acusado de espalhar a cizânia entre os cidadãos, de corromper a juventude e de introduzir divindades diferentes das tutelares da polis, uma assebeia (impiedade) promotora da dissolução da “comunhão política” e da destruição moral da cidade. A comparação com as “peças isoladas de um jogo” também é curiosa, se pensarmos que a vida social tem sido muitas vezes comparada a uma “comédia”. Já sabemos que os cães de Diógenes tinham faro e dentuça afiada para as falsas aparências; deixo o problema de saber se não terá sido por argumentar mais pelo pau que pela razão, que o nosso Diógenes escapou do mesmo destino de Sócrates... O que me parece é que, no contexto desta parte inicial da sua Política, Aristóteles terá ecoado talvez a memória arcaica de bandos de malfeitores (gangues de pares, celibatários) sobrevivendo da violência sobre grupos familiares ou tribais. E quem sabe se não foi a meditação destes lugares aristotélicos que, séculos mais tarde, levou um Thomas Hobbes a representar um “estado de natureza”, apartado do estado político, com as sombrias e selvagens cores da “guerra de todos contra todos”.



[ Foi citada a 1ª edição portuguesa da Política feita directamente do grego (1998), em tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes.
Na imagem, Aristóteles Contemplando o Busto de Homero, de Rembrandt, 1653. ]