quarta-feira, janeiro 06, 2010

ANO NOVO, PENSAMENTOS NOVOS



Novo ? Que pode haver de “novo sob o sol”, depois daquela Novidade absoluta que memorei aqui na semana passada? E não está já pensado tudo, de todas as maneiras? O leitor julgará. Aqui vão doze, por cada uma das votivas passas que são de regra na passagem de ano. Os meus desejos são que o leitor não fique passado de tanto disparate. Talvez que pensamentos tão díspares das ementas do dia cobrem alguma relativa novidade à conta de intempestivo, inactual sabor.


1º.
Ganha vulto, engrossa, cresce, levanta-se como acima de todas as mais, avança para terra como a querer cobri-la toda… e súbito cai, desfaz-se em espuma, tentando somente subir areal acima mais longe que a onda anterior, e acabando como todas as outras, recuando, refluindo sobre si, embatendo nas novas que abrem caminho, que à sua vez se crêem sucessoras mais bem sucedidas, a querer ir mais longe… Quem avança na crista da onda só tem olhos para o progresso, julga que pode abarcar toda a terra, e raros são os que olham para trás de si e reparam que a onda levantada é apenas um momento fugaz do mar imenso e das miríades de ondas que têm atrás de si, sem qualquer poder sobre ventos, correntes e ritmos diários ou sazonais das marés. – Que resta da espumosa soberba de onda nova, levantada e logo abatida ? Esforço vão e sem sentido, “absurdo”, como querem alguns náufragos da razão? Mas resta na terra areal um perfil a desenhar-se, que o escultor Tempo vai esculpindo.


2º.
Uma experiência difícil e rara, mas não inacessível, diria o patriarca Parménides, nascido na itálica Élea mas estrangeiro aos “trilhos comuns e erradios dos mortais”. Que dizia então este filho de Hélio ? – Que, sem caução divina, se não pode humanamente decidir, entender e dizer de “o que é” ou “não é”. Resta o historial discorrer das “opiniões dos mortais”, mais ou menos plausíveis, sobre a “diacosmese”, a ordenação temporal do Cosmos, aparente às variáveis observações, do olho nu ao radiotelescópio computorizado...

Um jovem audaz, que na juventude se encontrou com o velho Parménides e o estrangeiro de Élea, foi Sócrates ateniense, que muitas vezes depois trancaria os levianos sofistas nas indecidíveis aporias sobre “o que é” ou “não é”. No final da vida, na cara do democrático tribunal que o condenou à morte, ofereceu aos que o acusavam de impiedade a solução, cautelosamente, como “o mais provável/possível” (kindyneýei) : - « O mais provável, ó homens, é que na realidade só o deus sabe…. » (Apol. 23 a)

Sem caução divina nenhuma sobre “o que na realidade” (tô ónti) “é” ou “não é”, levando a indagação (skepsis) às últimas consequências cépticas, um discípulo de Sócrates que já lembrei aqui – Arcesilau de Pitane (séc. III a. C.) – concluiu: « que nada sei… e que nem sequer isto sei.»


3º.
Não muito antes do tempo em que se levantou Parménides, os abatidos hebreus no exílio de Babilónia recolhiam, ordenavam e redigiam as tradições orais do seu povo, para que se não perdessem. No livro de Shemôt, que conhecemos com o nome grego de Êxodo, o leitor pode começar a ver no cap. 3, versículo 14 as decisivas consequências daquilo que, no filósofo de Élea, parece aos mortais olhos miradores de miragens especulações “abstractas” sobre “o ser”. Mas, se quer coisas mais “concretas”, agora que vai na crista da onda em direcção à praia comum, olhe direito e veja como tantas vezes a terra ficou tinta de sangue com as belicosas tesuras dos que se levantaram a determinar “o que é” contra os não menos duros que lhes opunham “não é”. Até hoje.


4º.
Se a racional humildade epistemológica de Arcesilau, que por outro lado apelava a um eulogos (bom senso) nos comportamentos relacionais, não foi bem sucedida; se o que importava era “não dar ouvidos a mim mais ao Logos”, como advertia de si o mestre velho de Éfeso, Heraclito, pareciam justas e justificadas as apóstrofes que dirigiu aos “surdos” e aos “burros que preferem a palha ao ouro”, concluindo num robusto realismo, que ainda hoje pareceria definitivo: « A maioria é má, poucos os bons. »

Não era definitivo. Apelando ao Logos, repondeu ao mestre da antiguidade o Verbo do divino Mestre da humanidade nova: em Marcos, 10, 18; em Lc 11, 13 e 18, 19; em Rom 3, 23. (E, quanto a Parménides e ao livro do Êxodo, cf. João 8, 24.28.58.) -


5º.
Que todos somos maus traduzo eu assim (mal): que não se trata, em primeira instância, de valores e comportamentos da moral social, ou de direitos e deveres da ética. – É uma cisão ontológica entre ser e aparecer existente a deperecer no espaço-tempo; a catástrofe existencial duma vida deficiente, débil e residual, doente e sofrida de morte, morrendo e matando; são os olhos duma insuficiente razão, encegada e sonhando fantasias. E também é o gosto perverso no malfazer; a dificuldade de a vontade fazer o que mais deve querer; a liberdade quase de todo subjugada à necessidade.

Que todos somos maus é um pensamento novo ? Não, é velho como este mundo desfeito em que aperecemos descons/certados. E, sim, é relativamente novo, em face da crença recente de que todos nascemos bons e as condições sociais ou políticas é que nos fazem maus.


6º. Um animal monstruoso, ameaçador da ecologia terrestre, para que serve? Dizem uns ingénuos ou engenhosos que , sob a pressão das condições ambientais, serve para evoluir e “criar” uma espécie mais capaz de responder bem aos desafios do ambiente social e natural, mais bem adaptada... Para estes, não há animal monstruoso nenhum e só capaz de, por si mesmo, gerar monstruosidades. Digo eu, com outros que pensamos sempre em pessoas individuais (as gotas que fazem as ondas e o imenso mar), primazes sobre “classes”, “espécies” ou “géneros”: - serve para mostrar a necessidade racional de vir cada um às opções decisivas do fim (como ideal fim/objectivo ou temporal termo). Como esta, exemplarmente: - animal como outro qualquer, ou filho de Deus?


7º.
A monstruosa debilidade da nossa razão cega, mostra-se (por exemplo) na incapcidade de nos compreendermos e resolvermos em clara mente como animais-e-filhos de Deus; a incapacidade de solvermos no normal paradoxo o que tendemos frustemente a pensar nos registos da contrariedade e da contradição (apelando para um ideal “princípio de não contradição” que não é assumível nem decidível humanamente, apenas possível de pensar-se em termos como o desta condicional: se é animal-e-filho de Deus, então não é animal como qualquer outro).


8º.
Uma aplicação do anterior à ética/moral: a desastrada insistência em terminantes decisões sobre o que é ou não é “bem” ou “mal”, quando existimos na perpétua condição de bem-e-mal, misturados e humanamente indecidíveis. (O mar de sangue que tem coberto a terra por via dos soberbos que se julgaram “bons” e levantaram contra os julgados “maus”!... )

Onde está “desastrada insistência”, pode ler-se: crucificada existência.

Outra aplicação, considerando o . Todos somos maus neste mundo em que todos aparecemos doentes e deperecemos de morte – e – todos somos bons no mundo perfeito querido por Deus desde sempre e para sempre, o que no tempo pode ser iludido e abrogado. (Aqui a chave única para ler esse artigo de Declarações justamente famosas: « Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.... » )


9º. Nas sociedades desfeitas desta parte rica e apodrecida do mundo, em que escrevo, acham-se os indivíduos cada vez mais sobre si, isolados e despersonalizados, diante dum “Estado” imitador da omnipotência divina. Mas contra pessoas instruídas que se reconhecem e reconstituem crescendo para a unidade da sua íntegra e vera humanidade (homem-e-mulher), nenhuma política ou polícia humanas têm poder soberano algum.


10º.
Não parece que nenhum homem possa chegar educado à viril idade sem sair do poder da mãe (a biológica ou a esponsal), e do poder da fome satisfeita ao preço da venda do corpo por um salário de “trabalhador”. Isto é: sem deixar de ser filho da mãe e filho da puta da vida safada.


11º.
A mais ilusiva e lesiva dependência seria substituir a mãe ou o pai pelo “Estado” e pôr-se alguma esperança na “Política”. O mesmo se diga da “Educação”. Basta ao leitor bem considerar o que ficou nos dois parágrafos anteriores e bem entenderá quanto a educação nada tem que ver com ideólogos de gabinete, administrações públicas e “escolaridades obrigatórias” (!). Isto é hoje, mais que nunca, apenas engenharia social dos comportamentos computarizáveis a reprogramar.


12º.
Falando de homens livres da mama da mulher e da teta do “Estado”, parece que não estou a falar em português para portugueses. Decerto não, para o maior número dos que hoje andam civilmente registados com tal nome. Por isso termino em termos da voz robusta e realista que os portugueses velhos foram capazes de falar ontem, – e eu passo e dedico aos que sejam capazes de a ouvir amanhã.

Presente à alerta e pronta consciência, eis uma certa ciência:

« Deseja o melhor, e espera o pior. »