quinta-feira, março 18, 2010

QUE FUTURO ?




« Portugal suporta uma crise, grave e duradoura, que é só sua e que só aos Portugueses compete resolver. Já desperdiçámos um tempo precioso e nada fizemos para atenuá-la, muito menos para superá-la.

Poderemos empobrecer lentamente até que da Europa só nos reste a geografia. Poderemos fingir que tudo está no bom caminho, mesmo quando sabemos que não está. Poderemos confiar nos acasos, com um optimismo que é apenas uma imensa irresponsabilidade. Uma coisa, porém, é certa: se não conseguirmos mudar o essencial da nossa sociedade, teremos o futuro comprometido.

A economia portuguesa regista uma década tão medíocre que só encontra paralelo próximo no fim da Monarquia e no princípio da República. Daqui emergem fenómenos sociais graves, desiquilíbrios financeiros perigosos, desmedidos endividamento público e externo. Chegámos à beira do precipício e, se dermos um passo em falso e tardarmos na reacção, ninguém evitará um enorme sobressalto. »

Tais são as primeiras palavras dum livro co-autorado por Henrique Medina Carreira, ex-ministro das Finanças, e Eduardo Dâmaso, jornalista. Publicado em Setembro do ano passado, titula-se Portugal: Que Futuro?, e tem como subtítulo – O Tempo das Mudanças Inadiáveis. Consta de uma longa entrevista escrita, precedida de uma Introdução, por Medina Carreira, e de um Posfácio, escrito pelo jornalista. A entrevista ocupa oito capítulos da obra, dos quais cinco dedicados a matéria económico-financeira; um dedicado ao sistema político vigente e sua eventual evolução; outro à Educação, e o último à situação da Justiça.

O dr. Medina Carreira sabe do que fala, e não cala. Diante a acutilância e clareza das suas intervenções públicas na rádio, televisão e jornais, os fruidores da actual situação em que vamos sobrevivendo, têm-lhe cominado a atoarda de “pessimista”: mas não desmentiram um único número das estatísticas que ele apresenta, nem avaliaram criticamente nenhuma das soluções que preconiza. Umas e outras, as essenciais, estão neste livro.O leitor interessado e preocupado com o seu presente e próximo futuro de seus filhos e netos em Portugal (se não se resigna a vê-los condenados à emigração), tem aqui uma obra imperdível de conhecer e meditar.

Medina Carreira considera que, se o nosso problema mais imediato e urgente é a economia, o seu remédio tem de ser procurado na política. Mas também sabe que « o nosso país está a suportar a acção de um sistema político-partidário fechado sobre si mesmo, com reduzida qualidade, intencionalmente “armadilhado” na criação dos requisitos para a sua sobrevivência e, até agora, sem qualquer capacidade para promover a sua requalificação. » Até agora... E no futuro, que urge? « Como devem os principais partidos e as suas elites dirigentes mudar este estado de coisas ?» Tal era o mesmo problema que a profª Teixeira Pequito encarou na sua tese, que lembrámos outro dia. O presente autor começa por apelar a um elementar princípio-dever de cidadania: « Desde logo e sempre, tendo presente que a sua [dos partidos] decisiva função consiste na promoção do desenvolvimento e do bem-estar de todos e não na satisfação dos interesses dos seus “aparelhos”. » No cap. VI o leitor encontrará propostas mais concretas para uma reforma do sistema, mas não é por acaso que o autor começa por evocar esse princípio de elementar cidadania. Como ficou dito, o sistema político vigente da partidocracia está “armadilhado” de maneira a não consentir substancial modificação nenhuma não autorizada pelos partidos, que monopolizam a representação política da soberania popular. ( Com duas excepções controláveis e controladas: o instituto do referendo e a presidência da República. ) Por isso o leitor verá que as soluções propostas por Medina Carreira supõem duas condicionantes (in)viabilizadoras em alternativa: o consentimento (improvável) dos partidos numa revisão constitucional desvantajosa para eles; ou um golpe de estado constitucional.

Mas há outras condicionantes, tão mais pesadas que podemos considerar determinantes. - Numa esplêndida síntese do mesmo quadro sombrio desenvolvido no livro em apreço, por seu lado o prof. do ISEG Trigo Pereira (já citado aqui, e a quem devemos um livro de análise minuciosa e propostas de reforma da nossa lei eleitoral), em artigo de 18 de Dezembro passado num jornal diário, falava de « incapacidade política de perceber a gravidade desses problemas [económico-financeiros] e de lhes dar uma solução ». Eu digo que a incapacidade não estará tanto no “perceber”: na nossa comparsaria política há menos estúpidos que exploradores indiferentes e oportunistas. Aproveitam a situação e tratam da vidinha deles. A ênfase deve pôr-se no verbo dar, na vontade e capacidade de resolver. A discreta visita que nos fizeram no passado Dezembro uns peritos do FMI, é mais um sinal dessa duvidosa capacidade.

Mas a incapacidade de conceber e a incompetência de acertar nas soluções nem seriam o pior mal, se não tivéssemos uma sociedade civil completamente desvitalizada e dependente: os dois terços de portugueses que dependem directa ou indirectamente dos salários, subvenções, compensações e pensões do Estado. Mas a anemia e dependência dos dirigidos e a persistente impotência dos pseudo-dirigentes resultam duma abdicação e submissão mais fundas e menos patentes: a dos partidos do sistema constitucional legal a outros “partidos” da rede constituída do sistema informal de grupos de interesses (nacionais e internacionais, de diversa origem e natureza), que capturou e controla os (principais) partidos públicos e legais. E, como o sistema dos partidos se confunde com e reduziu a si o Estado, de aí resulta que a Rede é o centro (um policentro) efectivo do poder na actual situação política portuguesa. Veja-se o que dizia há poucas semanas ( a 19 de Janeiro, num jornal semanário) o juíz e ex-director da Polícia Judiciária, José Marques Vidal:

« Neste momento os que se preocupam com o poleiro são a fachada do poder. O poder é hoje uma mistura bastante complexa. Há esta fachada que é formada pelos políticos. Mas depois existe, no miolo, uma mescla de empresas, cartéis, que comandam os políticos. Hoje, parte do poder económico vem de organizações criminosas. O dinheiro sujo movimenta quantidades impressionantes. Mais que os orçamentos de alguns Estados. »

Muito mais, sem dúvida: calcula-se em 20 % - vinte por cento - do Produto Mundial o peso económico da economia paralela das off-shores e do “dinheiro sujo”. A imposição de interesses particulares, legais ou ilegais, a políticos sem condições de proteger e sobrepor o interesse colectivo, não é nada que o dr. Medina Carreira desconheça. Leia-se, a propósito, este trecho em que nos relata certo momento da sua experiência pessoal de intervenção directa na vida política
( a ênfase é minha) :

« (...) A realidade consolidada depois disso é esta: os pequenos patrimónios têm bens imóveis e pouco mais, tributados em IMI [Imposto Municipal sobre Imóveis] e IST [Imposto sobre Transacções] ; os grandes patrimónios são integrados quase exclusivamente por riqueza mobiliária – títulos de variadas espécies – que fogem facilmente a qualquer tributação patrimonial. (…) A questão da tributação das grandes fortunas é, pois, não só um problema político como, sobretudo, de uma grande dificuldade técnica.

Os governos hesitam muito perante o risco da fácil expatriação da riqueza mobiliária – os títulos -, pelos inconvenientes económicos internos que isso pode representar. Mas, além dessa, resta o obstáculo técnico, para o qual só encontro uma solução, nas circunstâncias actuais: a da tributação dos títulos na entidade emitente dos mesmos, sem cuidar de quem são em cada momento.

Exemplificando: o accionista de um banco suportaria, directa ou indirectamente, o imposto patrimonial porque seria o próprio banco a pagá-lo ao Estado, em sua representação, aplicando uma taxa proporcional sobre o respectivo valor tributável.

Há uma proposta nesse sentido, apresentada em 1999, na sequência do convite que, para o efeito, me dirigiram em 1997 António Guterres e Sousa Franco, respectivamente chefe do Governo e ministro das Finanças. A proposta de tributação do mobiliário, de 1999, começou muito cedo a incomodar os grandes accionistas, porque perceberam ser impossível a fuga com os mecanismos gizados. Com esse sistema pagariam fatalmente, pois ele não consentiria quaisquer “habilidades”. Contra a proposta de 1999 moveram-se, desde muito cedo, creio que junto de António Guterres, influências destinadas a “sabotá-la”; como usualmente, este acabou por “encolher-se” e foi incapaz de honrar os compromissos que tinha assumido.

Nunca houve, à volta disto, uma informação séria, pelo que nada ficou esclarecido; nunca se percebeu, minimamente o que estava em causa.

A verdade foi apenas essa. Por isso, temos hoje uma solução em que os pouco abonados pagam sempre IMI e IST sobre imóveis; e os ricos nada pagam, a título de transacção patrimonial, pelas suas carteiras de títulos. »

E agora confira-se com este correspondente passo do Posfácio escrito pelo jornalista Eduardo Dâmaso:

« Há muito tempo que se tornou evidente que o país não é governado à medida dos seus poderes legítimos, mas de um conjunto de interesses com enorme capacidade de manipulação política. »

Tal é o nosso problema, que aliás não é só português. E se é necessária e prioritariamente político, parece-me que estou a ouvir algum prezado leitor a ecoar-me aqui no Tonel que – à esquerda do centrão político que nos plantou de cepa torta no pântano – , há alternativas que estes analistas preocupados com a diagnose e prognose da nossa situação actual desdenham considerar. A observação é bem achada, e bem merece outro postal, se me sobrar paciência para o assunto e não me tolher o escrúpulo de desiludir expectitivas caras a algum leitor. Antes, contudo, terá aqui no próximo a resposta directa à pergunta em título deste.