quinta-feira, março 04, 2010

DIFÍCIL LIBERDADE

Imagine o caro leitor que na hiperabundância do hipermercado em que entrou não existia, entre tantos e tão diversos, aquele artigo que decidira adquirir; e supunhamos que só esse artigo que procurava, e nenhum outro do mesmo género, é unicamente o que lhe interessa. Nestas condições, a multiplicidade e diversidade dos artigos disponíveis é irrelevante para a satisfação da vontade. Em contrapartida, tivesse o hipermercado sido despojado de todos os artigos menos um – esse que era do seu interesse -, com satisfazer o valor da aquisição dele tinha realizado essa vontade. E, se a liberdade é alguém poder realizar o que quer, o leitor podia dizer-se livre.

As lições de senso comum que esta comezinha situação sugere ao bom senso não são poucas nem de menor consequência. Logo à partida, afunda-se aquele sofisma da propaganda que confunde ou reduz o livre-arbítrio à oferta de muitos e diversos objectos disponíveis. Um único basta, se é o que o sujeito quer. O livre-arbítrio está do lado da vontade, que quer ou não quer – mesmo contra ou apesar do seu interesse mais imediato -, não do lado das coisas, muitas ou poucas. (Aplicando à vida política, de que temos falado: o pluralismo partidário torna-se irrelevante ou até oposto à liberdade cívica, se nenhum dos vários partidos interessa aos eleitores. Disto, é óbvio, não há-de inferir-se imediatamente que um só partido seria bastante: em sociedades alargadas e complexas de tantos e tão diversos interesses, unicidade e unanimismo só poderiam ser artifícios forçados. ) Mas também outra confusão usual cumpre discernir – entre desejar e querer -, como já advertimos aqui.

Há a considerar mais o seguinte. – Se o interesse do agente está ligado a um objecto qualquer (coisa, pessoa, acção ou situação) exterior a si, ou seja um único ou mais do que um objecto, a sua vontade fica, por esse facto, dependente da existência e acessibilidade de tal objecto; e, portanto, será a priori menos livre do que a vontade solta de tal dependência. Foi a lição que, segundo o conto, deu certa criança ao nosso filósofo, quando a viu levar a água da ribeira na concha da mão à boca. E Diógenes tirou do bornal a escudela que usava e deitou-a fora: quem era capaz de dormir num tonel, também não precisava de mais que as mãos para comer e beber. Estamos, com efeito, a falar da celebrada autarkeia ou auto-suficiência, tão prezada pelos velhos filósofos, cuidadosos de cultivarem e conservarem a vontade livre o mais possível de constrições exteriores a si própria.

Para o que segue, julgo necessário e oportuno relembrar o complexo de factores que parecem implicados no acto da vontade ou intencional: motivações; finalidade; deliberação; decisão; como também, do lado comportamental, a aplicação da decisão aos meios disponíveis; o resultado; as consequências.

Pode dizer-se livre a decisão da vontade de um indivíduo, nestes termos: é a que mais lhe convém ou interessa sendo ele quem é; e estes termos vão no sentido de se determinar por si própria (autonomia/autodeterminação) numa resolução determinada (decidida) a empregar os meios para os resultados adequados ao fim que se propôs; mas também no assumir as consequências por que pode razoavelmente ser responsabilizado quem é autor dos seus actos. Nestes termos, salta à evidência a importância da deliberação na formação da vontade livre: como discernimento da motivação que se identifica com o melhor interesse do agente, mas também na provisão dos meios mais aptos ao resultado intencionado e na previdência das consequências possíveis. Noutros termos: a importância do velho preceito - Conhece-te a ti próprio -, porque se o indivíduo não se conhece bem, não pode bem julgar (deliberar) o que firmemente quer ou não quer.

Em suma, sistematizando estes aspectos que me parecem fundadores duma liberdade possível e, consequentemente, fundamentais numa educação para ela:

(1) Poder um indivíduo conhecer-se a ponto de saber o que melhor lhe convém, sendo ele quem é. (Autognose)
(2) O poder de resolver-se por si próprio, determinado e levado ao fim que se propôs. (Autonomia)
(3) O poder por si próprio dispor e empregar os meios para obter (ou corrigir) resultados em conformidade com os fins que se propôs. (Autarquia)

O leitor sabe ou pressente que a simplicidade destes esquematismos encobre mal a enorme complexidade dos problemas envolvidos na velha questão da existência real de liberdade nos humanos, a começar nas primárias causas motivadoras sobre as quais o agente delibera: causas que transcendem o controlo do sujeito; ou que lhe não são conscientes; ou que a consciência auto-iludida mistifica, tomando como suas próprias causas de facto induzidas pela sociedade (os “interesses de classe”...) ou pela sugestão das propagandas. O que tudo está ligado à não menos momentosa questão de conhecer-se cada um tão bem que possa garantir (sem margem para dúvida razoável) qual seja a sua verdeira vontade, tantas vezes pouco ou nada transparente a nós próprios (os problemas da “vocação”, da orientação escolar ou profissional, do casamento, etc.). Até à insuprível falta de meios ou à insuperável incompetência ou inabilidade de os empregar em conformidade com os fins em vista. Para não falar na velha “falta de força” de vontade, radicada em défices motivacionais (ou contrárias motivações) que o sujeito (uma vez mais) não conhece nem controla, ou não acha em si ou fora de si os meios de reforçar.

A lição a tirar é que a liberdade (se realmente possível) é uma luta: pelo conhecimento de si e dos precisos meios para a realização de o que o agente quer, depurando, corrigindo, superando ou rejeitando défices e contrários impedimentos. E como a acção dos agentes humanos é neste mundo necessariamente desenvolvida no tempo, teríamos este corolário: a liberdade (se possível) efectiva-se existencialmente como acto de progressivo desprendimento de condicionamentos de circunstância, interiores ou exteriores ao sujeito, que o sobredeterminem.
( O grande filósofo Kant acrescentaria uma outra qualificação, incómoda aos facilitismos de amoralistas ou relativistas morais: conhecer-se a si e aos precisos meios para se realizar o que se quer - tanto como o que se deve querer, enquanto membro duma comunidade de seres racionais. )

Mas, será tal libertação possível? Aparentemente. E eu alegaria dois casos empíricos que me parecem bem expressivos e relevantes (não digo concludentes, que não creio, com o mesmo Kant, a liberdade como empiricamente demonstrável), porque colocam o agente humano em confronto com forças ou “leis” da natureza as mais fortes. – A força da gravidade amarra-nos à Terra, e a nossa estrutura biomorfológica não nos dá os meios de nos elevarmos muito acima do chão e voar. Mas desde remotos tempos a humanidade teve esse “sonho”, esse “ideal”; aliás tão universalmente difundido como as práticas religiosas, com algumas das quais ( significativamente ) procurávamos elevarmo-nos “em espírito” e chegar aos “céus” e aos “seres celestes”. Ora, com o tempo e o engenho, encontrámos os meios de efectivamente elevar o corpo bem acima da Terra, voar, e levámo-lo... até à Lua. – O segundo caso confronta as poderosas motivações da fome e da sede, capazes de nos fazerem beber urina e sangue, ou de comermos a carne doutros humanos mortos, mesmo familiares queridos (como no séc. XX europeu, no cerco de Leninegrado). Pois a “greve de fome”, levada até à morte, afirma a existência nos humanos de intencionalmente assumidas motivações ainda mais fortes e capazes de superarem essas fortíssimas motivações da natureza biológica.

Como é evidente no caso do voo e aviação, a liberdade precisa de tempo, até multimilenarmente orientado, e é de facto um processo de progressiva libertação. Mas, dá-se nos indivíduos o mesmo que parece ocorrer na história colectiva ? Se pode sustentar-se isso até à plena maturidade pessoal, quem diria o mesmo vendo-nos amarrados pela trombose à cama dum hospital, ou menorizados e inscientes velhos submetidos num “lar” à tutela aniquiladora dos srs. Parkinson e Alzheimer? Precisamos de tempo, mas o que o tempo dá à mão do adulto, a do velho deixa cair e o tempo leva. Apesar de tudo, se vencemos a gravidade, a fome e a sede, por que não havemos de vencer o tempo ? Estamos determinados (ou somos determinados...), nem que para isso seja preciso remexer e recompor de alta a baixo o genoma humano... Eis aqui o que parece estar significado no processo da, real ou ideal, libertação humana: corremos no tempo... – para subir além do espaço e do tempo.


[ Vá este postal em respeitosa homenagem ao operário Orlando Zapata, que levou uma greve de fome de oitenta e seis dias até à morte nas prisões cubanas, em finais de Fevereiro passado. Quando morreu, estava o ex-operário Lula da Silva conversando diplomaticamente em Havana com o fidel clone Castro, amarrado à força das “razões de Estado”...

O leitor não esqueça que a “greve de fome” modernamente motivada por motivos ético-políticos de denúncia ou protesto, tem ainda hoje, como antigamente, outros motivos – religiosos -, e chama-se “jejum”. Nos tempos medievais, alguns dos ordenados perfeitos, na heresia do Catarismo, isolavam-se e deixavam-se morrer de fome: uma acto que, na língua occitana, chamavam endura. ]