quinta-feira, fevereiro 25, 2010

O CENTENÁRIO DA REPÚBLICA


Alguém terá lembrado aos fruidores e mediáticos protagonistas da nossa actual situação política que era ano centenário da República e, pesarosos de não haver antes Eurofutebóis ou Expos, lá sacaram à “crise” uns milhões de euros para comemorações.

Ocorre imediatamente perguntar quanto é que de facto se comemora: os acontecimentos de um ano (1910) que faz cem, ou serão mesmo os 100 anos? É que a 3ª República, pós 25 de Abril, festeja-se todos os anos nesta data. E incluem-se nas comemorações os 40 anos da República salazarista? Parece que necessariamente, ou ficaríamos apenas com 37 mais os 16 anos da 1ª República, que esta aliás todos os anos se comemora também, no 5 de Outubro. Mas, se são mesmo os 100, é claro que já se cheira o que é que os festejadores vão fazer dos incómodos 40 do reitorado do reitor Salazar: comemorar 40 anos de resistência republicana à... República (salazarista).

Isto traz-me a segunda questão: o que é que há assim tão digno de festejar nestes acidentados e contraditórios anos das três Repúblicas? Serão, pegando em um só exemplo, os 63 anos de fervoroso nacionalismo, para o qual os territórios ultramarinos portugueses eram “solo sagrado da Pátria” ? Ou antes os 37 anos de precipitado abandono deles e de não menos precipitado integracionismo eurocêntrico e eurotânico (da OTAN ou NATO, que nos tirou de África para nos levar para a Bósnia e o Afeganistão), com uma sobras de vagos entonos líricos à “comunidade da lusofonia”?

Os títeres oficiais lá sabem (ou nem isso) o que lhes encomendam. O que eu irei memorando aqui, a meu modo, são cem e mais anos da história portuguesa. Sim, essa mesma, a esquecida e menosprezada História de Portugal, que os festejadores fogueteiam cá fora para a televisão e não sabem, não podem ou não lhes interessa comemorar como devia ser e era seu estrito dever : - ensinando-a capazmente nas escolas.
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Começarei hoje com a citação de um historiador especialista na nossa história social e política dos sécs.XIX-XX, com vária obra publicada especiamente sobre a 1ª República, que é esta evidentemente a focada pelos festejadores oficiais e seus patronos e mandadores oficiosos. A citação é-lhes dedicada, tanto como àqueles que, a propósito do 31 de Janeiro de 1891 (primeira tentativa armada e frustrada de implantação da República, e agora primeiro dia das celebrações centenárias), vieram agora a público clamar que o acto terrorista do Regicídio de 1908 fosse incluído nos festejos. O leitor pode encontrar a citação adentro dum longo capítulo (pp.47-137) do livro Portugal. Ensaios de História e de Política, que Vasco Pulido Valente publicou no ano passado. O capítulo titula-se “A ‘República Velha’ (1910-1917)”. Nas primeiras 7 páginas deste ensaio o autor utiliza 15 (quinze) vezes as palavras terror/terrorismo/terrorista, que voltam a reaprecer por duas vezes nos dois parágrafos únicos da Conclusão. Na p. 51, ele explica-se:
« O terror não vinha, evidentemente, do exercício constante da violência. A vida oscilava entre períodos de extrema violência e outros de relativa paz. O terror não vem do uso sistemático da força ou sequer da particular crueza da repressão. Vem sobretudo de não existir uma legalidade, ou sequer um simples conjunto de regras tácitas, mas fixas e compreensíveis, que definam os direitos e os deveres dos indivíduos e das instituições, e também da ausência de qualquer linha, mesmo ténue e até secreta, que separe os agentes da repressão das pessoas privadas. »

Havia decerto uma “legalidade”, no papel e na letra daquela torrente legiferadora que logo após o dia 5 começou a jorrar do Governo Provisório, e principalmente do seu ministério da Justiça (um chuveiro legal muito semelhante ao que nos tem inundado nesta 3ª República), típica daqueles crentes em que não há prática social nenhuma que não possa moldar-se de qualquer maneira à vontade escrita dos ideólogos de gabinete. Mas o que as leis valiam e valem na prática quotidiana... Lembra-me, por falar no 31 de Janeiro, um exemplo que serve para a “liberdade de expressão” e para a falta daquela “linha separadora” de que fala Pulido Valente. E vá o caso também em homengem ao grande intelectual e erudito português que foi José Pereira de Sampaio (1857-1915), conhecido por Sampaio Bruno: formado em Medicina, jornalista desde os 15 anos de idade; notado e processado por isso aos 16; autor de uma não menos notada e verberada Análise da Crença Cristã, aos 17; membro do directório do Partido Republicano desde os 21. Comprometido com a revolta do 31 de Janeiro, de que foi um dos impulsionadores, Sampaio Bruno teve de fugir e exilar-se em Paris. Regressado ao fim de dois anos, começou a entrar em linha de choque com outra figura grada do Partido Republicano, Afonso Costa, diferendos que vieram a público nos jornais e num congresso do partido. Aconteceu que, certo dia de 1902, ia o portuense ilustre e boníssimo homem que foi Bruno passando sozinho numa rua da sua cidade, quando do vão duma porta lhe sai a caminho o Costa, acompanhado duns amigos: injuriam o portuense, cominam-no de “traidor” e, acto contínuo, passam a agredi-lo a murro e à bengalada. A intervenção oportuna de passantes corajosos não evitou que os energúmenos fugissem sem deixar em sangue o rosto e cabeça do pacífico homem, que recusou apresentar queixa contra os correligionários. Tenho por expressivamente assinalada neste incidente a razão daqueles que hoje defendem teria sido muito diferente em capacidade e qualidade cívica o regime republicano, se tivesse triunfado naquele Janeiro de 1891, sob a égide de intelectuais como Bruno e Basílio Teles ( e não por acaso este último, posto que repetidamente instado, recusou-se sempre a uma participação política activa no pós 5 de Outubro). Por seu lado, já aqui dava sinal Afonso Costa do que seria e do que faria, depois de 1910, aquela informal e torcionária guarda civil que fez de polícia de choque e política, popularmente conhecida por formiga branca. Logo em 1911, na sequência da evolução política e da ofensiva anti-religiosa levada a cabo a partir do ministério de Afonso Costa, a desilusão e acutilância crítica de Bruno (que não era católico, mas profundamente liberal) chega a ponto de, confessar-se “completa e absolutamente enojado com a situação”, no seu jornal vespertino do Porto, Diário da Tarde (creio terá sido em Maio). Pois sucedeu que a púrria afonsista lhe invade e vandaliza as instalações do jornal e é de novo agredido, num café da cidade.

Assim se estimavam entre si alguns dos próceres republicanos. E aqui está a tal “ausência de qualquer linha que separe os agentes da repressão das pessoas privadas”. Os que deitavam bombas antes do 5 de Outubro, e continuaram a deitá-las depois, sabiam-no bem.