quarta-feira, fevereiro 17, 2010

QUARTA-FEIRA DE CINZAS


« Alma minha, por onde andas desgarrada, vagabunda, perdida, buscando satisfação e descanso onde é impossível achar mais que aflição e desassossego? Este mundo, saído das Mãos de Deus e malignado nas dos homens, não é outra coisa que os mesmos homens, que nele habitamos, e as obras que nele fazemos. E sendo cada homem uma fonte de desordens, fraquezas, malícias, ignorâncias, vaidades, mudanças, trabalhos, necessidades, dores, defeitos e pecados, considera bem como estará o mundo alagado e submergido no dilúvio de tantas misérias, e que lugar haverá nele onde a pomba de um quieto e sincero espírito assente o pé seguramente. Não é o homem, quanto de si, mais que estas duas coisas: Peccatum et Mendacium: Defeito e cobertura desse defeito, ou cadáver e mortalha desse cadáver. Por outro modo: chagas e panos; chagas das suas misérias de culpa e pena; e panos das suas afectações mentirosas, com que procura vendar essas chagas, em vão; porque as chagas ressumam pelos panos, e ficamos não só asquerosos mas ridículos. Erramos como ignorantes: eis aí a chaga. Mas logo acudimos a desculpar o erro, ou sustentar que foi acerto: eis aí os panos. Anelamos ao ouro e prata, como ambiciosos: eis aí a chaga. Mas logo queremos persuadir-nos, com razões aparentes, que assim é conveniente e ainda preciso: eis aí os panos. Julgamos mal uns dos outros, como maliciosos: eis aí outra chaga; em cima queremos que se entenda que isto é prudência: eis aí outros panos. Discorre, alma minha, por tudo o mais, e assim acharás que é tudo o mais; porque estas duas misérias, raízes das mais, têm lá seu princípio, onde todos o tivemos. Quebrou Adão o preceito, e logo se desculpou com Eva; deu Eva o escândalo, e logo se escusou com a serpente; Adão e Eva se acharam despidos, e logo se cobriram com folhas. Assim neste mundo tudo é nudez por dentro, folhagem por fora: Peccatum et mendacium.
Contempla atentamente, não te enganes com o mundo; que ele é sumammente enganador, e tu sumamente enganadiço. Que é o mundo ? É (disse um servo de Deus que o conhecia bem) um estalajadeiro, que ao entrar o hóspede o trata bem e festeja, mas, ao despedi-lo, se mostra severo e rígido, e lhe pede grandes custas. Todos nós somos hóspedes e passageiros, não havemos de ficar moradores para sempre na estalagem do mundo. Oh que bom rosto nos mostra à entrada! Mas, que terrível à saída! Deixamos em custas a fazenda, a honra, o gosto, a vida, o corpo; e o pior é que as mais das vezes também fica em custas a alma, que se condena eternamente.
Que é o mundo ? É um mar infestado de corsários, que são os demónios; alterado de contrários ventos, que são as tentações; passeado de sereias e monstros marinhos, que são as afeições ilícitas; enganoso com sorvedouros e baixios, que são as traições e calúnias. Que é o mundo ? (Torna bem a olhar.) É tudo às avessas do que havia de ser: desordem sobre desordem, e nem ainda as mesmas desordens vão bem ordenadas. E é o que procurava emendar o outro Filósofo Cínico, mandando em seu testamento enterrar-se de costas para cima, para concordar com as mais coisas do mundo, que todas são às avessas.
Que são os gostos, honras e dignidades do mundo? Panos de armar: pela dianteira vistosos, pelo avesso feios. Tu páras a ver, e admiras a glória das ciências, o resplendor dos graus honrosos, a alegria da vida abundante e saúde inteira, a galhardia da formosura humana no verdor dos anos, as músicas, banquetes, jogos, edifícios, etc. Essas são as figuras do pano pela dianteira. Volta do avesso: que é o que vês agora ? Oh Deus meu! Não mais que vacuidade e instabilidade, soberba e aflição de espírito e perigos de inferno.
(...)
Que será isto, que sendo estes bens tão falsos assim os gozamos como verdadeiros ? E sendo momentâneos, assim assentamos neles o coração, como se fossem eternos! Que há-de ser senão cegueira, efeito de não amar a Deus e não seguir a Cristo, que é a luz do mundo ? Qui sequitur me non ambulat in tenebris (Jo 8, 12). Escreve-se que S. Luís, rei de França, edificou um grande hospital, onde recolheu de todo o reino trezentos cegos, dando-lhes ocupação honesta. Os cegos, que estão no hospital deste mundo, não têm conta; e o que mais prodigioso é, cada um parece que tem sua diferente casta de cegueira, porque tem diferentes vícios e apetites, opiniões e arbítrios. Não há pessoa tão vil e desprezível que não apeteça alguma honra; nem tão rica e possante que não queira ter mais; nem tão decrépita que não espere ter mais alguns anos de vida; nem tão ignorante que não presuma saber algumas coisas melhor que outros; nem tão sublimada em dignidades que lhe não fiquem asas no desejo para subir mais; porque se possuir o mundo inteiro chorará, como Alexandre, porque não há mais mundos. Eis aqui os cegos e as cegueiras, causadas pelo bafo do demónio que nos empana os olhos da alma, e assoprando também nos carvões dos bens deste mundo, os faz resplandecentes brasas. Opinião, gosto, aplauso, etc., não são mais que uns carvões negros, feios, imundos. Mas de carvões a brasas, não vai mais que assoprar-lhe o diabo, e logo eles reluzem e nos fazem arder na concupiscência deles. Até que nós, e o mundo com todas suas coisas, nos tornemos em cinzas. »
Manuel Bernardes (1644-1710), Luz e Calor, Parte II, §§ 367-369.


[ Aqui fica mais um encomendado aos foliões vassalos do rei Momo, na ressaca das mascaradas carnavalescas. O texto revolucionário de Bernardes vira do avesso os valores florescentes nos XVIII e XIX e que viriam a frutificar no seguinte, o século mais mortífero que a humanidade conheceu, de que havemos da amargar o cálice até ao fim. O leitor já experimentado nas navegações deste mundo, já desenganado e advertido dos perigos de inferno, terá interesse em saber que logo no 370 poderá encontrar o complemento preciso e precioso, positivo e construtivo, do salutar realismo crítico do oratoriano. Quanto o bebedor deste Tonel, de paladar mais conservador, apreciará ao menos a referência ao nosso Diógenes, segundo uma história reportada pelo compilador Laércio; e cotejará a interpretação de Bernardes com a explicação literal dada pelo Cão de Sinope ao seu dono Xenodíades: queria ser enterrado de barriga para baixo porque ... - « Dentro em pouco tudo ficará voltado do avesso! » Tudo, o quê? Pense nisso o leitor. O que eu penso é que a resposta é muito concorde com tal outra que o mesmo Diógenes dera uma vez, quando lhe perguntaram porque sempre entrava no tearo pela porta de saída: - « Faço questão de fazer na vida o contrário do que toda a gente faz. » Ora, se o leitor lembrar que a figura do teatro do mundo tem uma antiguidade que remonta a Pitágoras...
É, enfim, mais um testemunho (e não único, na obra de Manuel Bernardes) do compreensivo acolhimento que o Cinicismo em geral, e Diógenes muito em particular, tiveram na tradição cristã. Um assunto que merece e tenho reservado para outra oportunidade. ]