quinta-feira, fevereiro 11, 2010

O FIM DO ESTADO DE DIREITO




Depois do primeiro abalo sofrido em 11 de Maio de 1984, desabou e desapareceu o Estado de Direito em Portugal no dia 11 de Fevereiro de 2007.

Nas suas origens, a noção de Estado de Direito surge como a tentativa de salvaguardar e promover na vida civil dos povos a ligação entre o domínio de o que é legal e de o que é moral. Na essência, trata-se de manter que na vida social as leis não percam o norte da Justiça e se orientem em linha recta – rectamente, em bom Direito – por esse ideal, capaz de ir fazendo a vida civil mais civilizada.

Como se articulam então aqueles dois domínios, o da legalidade e o da moralidade? Tem-se um Estado de Direito quando governantes e governados, todos, sem excepção, estão de facto igualmente submetidos à Lei; e quando esta garante a todos os cidadãos certos direitos que, em última análise, não são direitos dos homens porque são cidadãos – mas direitos dos cidadãos porque são homens. Por conseguinte, tem-se um Estado de Direito quando há uma situação política em que os poderes públicos efectivamente protegem e defendem direitos humanos. E assim tem-se que o Estado não se desvia da Justiça.

Pode o leitor perguntar-se por que é que os direitos civis ou de cidadania não bastam, e hão de estar subordinados a direitos humanos. A razão é que os direitos cívicos são por si apenas de natureza social e política. O mero facto de conjunturalmente se conseguir uma situação política em que todos os cidadãos gozem de certos direitos e se encontram igualmente todos submetidos à Lei, não traz em si garantia nenhuma de que uma parte desses cidadãos, por qualquer motivo e por qualquer meio (mesmo por democrática maioria), não venha arbitrariamente a diminuir ou privar de direitos cívicos uma outra parte dos cidadãos. O compromisso com direitos humanos é a única garantia de que os cidadãos - qualquer que seja a sua condição natural ou social - têm certos direitos fundamentais enquanto seres humanos, que são direitos inalienáveis, isto é, de que nem os próprios nem ninguém os pode privar; e que são portanto universais, extensíveis a todos os indivíduos humanos, cidadãos nacionais, estrangeiros ou apátridas. É que, na sua essência, os direitos humanos não são de natureza meramente social e política – mas ontológica e ética. E assim temos segura aquela sobredita ligação entre a ordem legal e a ordem moral.

Para as sequentes considerações deste postal e do assunto em título, basta-me considerar um direito humano fundamental, aquele que é a condição da existência de todos os outros e que, por isso, pode considerar-se eminentemente fundamental: o direito à vida. E o complementar dever que tal direito imediatamente impõe à consciência moral: o de não matar, senão por necessidade de legítima defesa.

O Estado português acolheu este direito no art. 24º nº 1 da sua actual Constituição política ( “A vida humana é inviolável”) e, no nº seguinte do mesmo artigo, assumiu tal dever até a ponto de não matar judicialmente em caso algum (nº 2: “Em caso algum haverá pena de morte”).

Contra a maioria expressa nove anos antes, uma nova maioria, em novo referendo, aprovou faz hoje três anos a despenalização do acto de abortamento por mera “opção da mulher”. Com esta cobertura, uma maioria parlamentar, em 8 de Março seguinte, deu força de lei à decisão maioritária dos votantes em referendo. A essencial novidade, relativamente à lei de 11 de Maio de 84, está nessa mera “opção” da mulher grávida (maior de 16 anos, ou com o consentimento do seu representante legal, quando menor; ou apenas dos médicos, na ausência desse represententante; o progenitor, em caso nenhum é considerado). A permissibilidade jurídica do acto não é moralmente irrelevante, a não ser para quem desde logo assumisse a ruptura daquela ligação entre legalidade e moralidade. Por isso mesmo houve a preocupação prévia de saber se a despenalização não ofenderia algum direito fundamental constitucionalmente protegido. Ora, nunca por unanimidade e, duas vezes até, por maioria de um único voto, os sucessivos acórdãos do Tribunal Constitucional sobre o assunto, desde 1984 até 2006, têm dado vencimento à doutrina que, em síntese, se expressa neste trecho exemplar do acórdão 85/1985, várias vezes citado posteriormente:

« A vida intra-uterina compartilha da protecção que a Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido (isto é, valor constitucional objectivo), mas que não pode gozar da protecção constitucional do direito à vida – que só cabe a pessoas -, podendo portanto aquele ter de ceder, quando em conflito com direitos fundamentais ou outros valores constitucionalmente protegidos. » ( Neste “conflito”, como na mera “opção” não está em causa o direito à vida da mulher-mãe, evocam-se agora estes: a “autonomia”, o “direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, a “maternidade consciente”... )

Comentando esta posição doutrinária, contrapõe o jurista Mário Bigotte Chorão, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e sublinho eu: « Em suma, o Tribunal Constitucional optou por uma solução despersonalizadora do nascituro e da garantia da consequnte tutela penal; limitou-se a admitir a ideia vaga de um bem constucional objectivo, a vida intra-uterina, sem o encabeçar no seu titular (como se existisse vida em si sem um sujeito vivente) e sem o totar de efectivo amparo constitucional. É evidente que esta orientação rompe clamorosamente com as exigências de igualdade conaturais à relação jurídica como relação de justiça, fazendo prevalecer a lei do mais forte sobre o mais fraco. »

Só não é evidente para quem não vê ou não quer ver que não há vida humana (intra ou extra-uterina) que não seja sempre a de indivíduos humanos vivos, desde o primeiro até ao último momento da sua vida natural. E que, não vendo ou não querendo ver tal, adoptam ad hoc a teoria de que na vida intra-uterina há humanos que ainda não estariam “investidos” ( sic, como dizem os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, dois luminares propagandistas desta teoria ) da condição de “pessoas”; e decidem que é vida menos valiosa do que a dos sujeitos que já seriam “pessoas”. Pelos vistos, seriam “pessoas” depois das 10 semanas; já aqui ao lado, em Espanha, uma nova lei propõe 12 semanas, como na França; na Holanda são 13; na Roménia, 14; na Suécia só depois das 18, e nos EUA só a partir das 24 semanas...

Por seu lado, diz o juiz conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, um dos juizes que, no Tribunal Constitucional, têm votado vencidos contra a teoria da “investidura”:

« A protecção constitucional da vida humana, incluindo a vida intra-uterina, implica antes do mais para o Estado o dever de abster-se de condutas que representem agressões a esse bem ou valor jurídico fundamental. Mas implica também uma vertente ou dimensão positiva, que se traduz na obrigação para o Estado de adoptar procedimentos e tomar medidas que salvaguardem e promovam a possibilidade de cada homem viver a sua vida.... »


Se o leitor considerar o exposto na primeira parte deste postal e concordar comigo em que a vida de cada um de nós, neste mundo, necessariamente é vivida no tempo, com o tempo, desde o primeiro momento até ao último do seu ciclo natural, não vejo que racionalmente não convenhamos no seguinte. –

1. Se nem todos os seres humanos são iguais perante a Lei e não gozam de igual protecção desta (os humanos que, até às dez semanas de vida, não são “pessoas”);

2. E se a lei não garante um direito humano fundamental e universal;

3. Segue-se que está rompida a ligação entre legalidade jurídica e a legitimidade moral, e não há Estado de Direito.

Ainda mais, com as seguintes agravantes:

4. Se a base de todo o Direito é a garantia da protecção dos mais fracos relativamente aos mais fortes;

5. Se, pelo contrário, o que o Estado garante é o “direito” de, por mera opção, alguns indivíduos terminarem com a vida de outros seus semelhantes, totalmente incapazes de defesa;

6. Segue-se que o Estado não só não se “abstém de condutas que representam agressões a um bem ou valor jurídico fundamental”, como activamente faz “prevalecer a lei do mais forte sobre o mais fraco”.

Isto significa: Não só não temos hoje em Portugal um Estado de Direito, como o que temos é um Estado anti-Direito.

Foi a previsível eventualidade de cairmos nesta aberração legal e abjecção moral que me levou, em Janeiro de 2007, a intervir pela primeira vez neste blogue. Advertia eu na altura que esta agressão directa e brutal contra os mais fracos, desprevenidos, indefesos e inocentes dos humanos não é sem consequências para a qualidade da nossa vida social quotidiana.

Temos visto e veremos se a despersonalização de alguns não se irá tornando gradualmente na insensibilização e desumanização de muitos.