sexta-feira, julho 23, 2010

UM ENCONTRO EM OUTUBRO DE 1911

A um ano da nossa revolução de Outubro, no dia 3, alguns grupos de monárquicos exilados na Galiza, mal municiados e mal preparados, entram no país sob o comando de Paiva Couceiro, para serem rapidamente contidos e obrigados à retirada. Mas esta ameaça comum não chegou para congraçar as desavindas facções republicanas que, pelo contrário, agravam as respectivas dissenções a ponto de, no dia 20, uma turba ter tentado assassinar o dr. António José de Almeida. Regista nas suas Memórias deste mês Raul Brandão: « O povo parece desvairar. (... ) A agitação nesta camada que vai de Alcântara ao Poço do Bispo é enorme. Fala-se de assaltos. Continuam as prisões. (...) os diferentes grupos de republicanos parecem a ponto de vir às mãos. Anteontem (27 de Out.) os amigos do António José [de Almeida] reuniram à noite na redacção da República, todos armados de brownings e smiths, na iminência dum ataque. São os fanáticos? É o povo? O país não é. O país está bem representado neste pobre António Lourenço que veio por aí abaixo da Guarda e que quer por força pregar ao governo e ao ser. Afonso Costa a ideia de Deus. – “Tudo isto mudará no dia em que eu os convencer”... »

O leitor recordará que ainda não eram passados seis meses sobre a aprovação pelo governo provisório da fundamental “Lei de Separação do Estado das Igrejas” , da lavra do dr. Afonso Costa e mais confrades maçónicos, que teve funda repercussão no país e mereceu o repúdio da Igreja Católica portuguesa e da Sé romana. Não foi ela sem relação com o apoio e envolvimento directo ou indirecto de muitos padres no norte com a incursão de Couceiro. Como não será sem relação com a vinda deste notável guardense a Lisboa. Quem era António Lourenço? Eis como no-lo dá Raul Brandão:

« Deve ter mais de cinquenta anos. É uma figura seca, amolgada pela vida. Tem não sei quê de grande e de triste. Quer exprimir-se e balbucia. É um aldeão que desceu da montanha e vem pregar ao povoado. Vê-se que aquela ideia o dominou até fazer parte integrante de todo o seu ser. Largou tudo, deixou tudo e pôs-se a caminho. Onde dorme? Onde come? Não sei, nem ele decerto o sabe. A todas as perguntas responde sempre da mesma forma obstinada:

- É preciso demonstrar a esta gente que Deus existe. Não sou católico, não me importo com igrejas nem com padres. Entendo, porém, que o mal de que padece toda a nossa sociedade é a descrença em Deus e o progresso do materialismo. »

Não é católico, mas tem letras, reivindica uma certa doutrina e está pronto a responder por ela:

« E António puxa dum papel. – O que quero está escrito aqui:
A ruína do país vem dos materialistas. Materialistas são os homens que dizem que não há Deus e que o homem é só matéria. Os homens que eu acuso, que se justifiquem; eu estou pronto a sofrer se não provar o que afirmo.
Por este meio ficam avisados os sábios materialistas a apresentarem-se a debater comigo, em reunião que daqui a dias se anunciará.
Deus existe!

Peço-lhe que assine o nome, e, vagarosamente pegando na pena com os dedos nodosos e habituados à enxada, ele assina: António Lourenço. António Lourenço vai pregar o idealismo às turbas de Lisboa. Quer principalmente discutir. »

Queria discutir e teve discussão; queria reunir a debater com os sábios, e surgiu esse inesperado e singular debate, com um sábio interessado e muito informado dos mais recentes progressos das ciências, e por essa altura já preocupado com a realização dum sistema filosófica explicador do inteiro universo, do homem e da vida. E é este encontro extraordinário que eu acho merece hoje comemorar-se, não certamente o dos republicanos no jornal República, de pistolas aperradas para defesa pessoal. Brandão relata-o assim:

« À noite surge inesperadamente [Guerra] Junqueiro e pergunta logo: - O cavador? Onde está o homem? – Fui-lho buscar. E tenho pena de não poder reproduzir textualmente a ironia que faiscou e durou um minuto irisada como uma bola de sabão.

- O senhor que é na sua terra?
- Cavador.
- Então como é que Deus existe?
- Porque foi ele que criou tudo isto.
- Quem criou tudo isto não foi Deus, foi o Diabo. Deus não pode criar senão uma obra perfeita. Ora tudo no mundo é imperfeito e o homem é mau. O senhor na sua vida nunca encontrou anjos.
- Mas, segundo a doutrina dos nossos maiores, no Paraíso o homem era bom.
- No paraíso o homem já era mau. (...) »

A “doutrina dos nossos maiores” não era a dos católicos, que Lourenço dizia não ser: no Paraíso o homem era inocente do bem e do mal. Junqueiro, por seu lado, num dos seus repentismos famosos de cómica caricatura, improvisava ad hoc um dualismo maniqueu para confundir o pobre com o problema do mal.

Estávamos em 1911. Não demorariam muitos anos para que o satirista Junqueiro, sem aparentemente nenhuma “irisação de faiscante ironia”, confidenciasse estas reflexões ao seu amigo Raul Brandão no dia 9 de Julho de 1921: « Também para mim o Inferno não existia. Hoje sei que há Inferno, o Inferno existe! Bem vê que Deus é infinitamente bom e infinitamente justo; portanto, o Inferno tem de existir, para as almas que durante a eternidade se não arrependerem. Mas há almas que não se arrependam durante a eternidade?... O cristianismo é uma verdade eterna. Melhor: existiu sempre, existiu antes de Cristo... »