terça-feira, julho 06, 2010

GUERRA JUNQUEIRO


No dia 7 de Outubro de 1910, Raul Brandão registava a publicação deste telegrama enviado pelo seu amigo Guerra Junqueiro, que começava e terminava assim:
« Ao Governo Provisório da República Portuguesa – Lisboa –. Saúdo na República a libertação magnânima e sublime do grande povo português. (...) Esperemos agora que a República seja sinónimo de ordem e de harmonia, de inteligência e de trabalho, de amor e de justiça, de liberdade e beleza, para que a história de Portugal esplenda no mundo novamente. Viva a pátria republicana! Viva Lisboa, a cidade heróica! »
A 17 de Maio de 1911, cerca de um mês após aprovação da Lei da Separação Estado-Igrejas, que o poeta classifica de uma “lei estúpida” que “só o mau padre ou o bandalho podem aceitar”, pronuncia-se assim sobre o ambiente político: « A república ou se modifica ou morre. Isto não resiste a quarenta tumultos por esse país fora. Junte ao movimento religioso os ódios, as paixões, a gente que conspira na fronteira. E ainda por cima não há maneira de formar um ministério homogéneo: o Afonso [Costa] e o Almeida [António José de] não se podem ver; o Camacho não esconde o seu desprezo pelo António José.... »
Meses depois, a 31 de Dezembro, Brandão regista estas palavras : « Mas Junqueiro, como sempre, sintetiza muito melhor a situação nestas palavras: - Já hoje, se fosse possível fazer um plebiscito ao país, não com papéis, mas dentro da consciência de cada um, na escuridão do seu quarto, a maioria monárquica era esmagadora. Havia menos republicanos do que antes do 5 de Outubro. »
O poeta foi, entre 1911-1914, o embaixador de Portugal na Suíça. Alguns anos depois, no último capítulo do 2º volume das suas Memórias, um registo intitulado “Os últimos anos de Junqueiro”, sem data:
« Fala sempre dos homens da república com grande amargura e desprezo: - Todos se anicham nos melhores lugares, eles e as famílias. Fora o Almeida [António José de] e mais dois ou três, o resto devora. »
E, com data de 9 de Julho de 1921, faz acta do seguinte:
« Ontem fui ao Porto, chamado por Junqueiro. Conheci o grande poeta em diferentes épocas da vida, mas nunca me fez tanta impressão como agora, posto diante de mim, magro e doente, com os braços estendidos e as mãos abertas: - Pesei o bem que fiz e o mal que fiz... (...) Toda a minha obra fica por fazer – exclama. O que publiquei é nada. Tenho dosi poemas, um e outro concluídos, perfeitos, admiráveis desde a primeira à última palavra, aqui... – aponta a cabeça – e não os posso escrever! A minha filosofia, em que trabalho há anos, aí fica fragmentária... Venha ver. Está no meu cofre.
Levanta-se, leva-me ao quarto. Mostra-me maços de manuscritos. [ Eram mais de quatro mil páginas de anotações, em que o poeta, que se dedicou também a vasto e longo estudo das ciências naturais, trabalhava há cerca de trinta anos e que projectava publicar com o título A Unidade do Ser. ] - Está aí tudo. Em seis meses concluía-a – mas não posso, não posso!... Tenho-a pronta, o problema da vida resolvido, desde o átomo ao santo, desde o santo a Deus. E não posso!... O que aí está são tentativas que fui escrevendo pela vida fora até descobrir a verdade. (...) Durante oito anos deixei de trabalhar por causa dessa [sic] miserável república – e agora não posso, não posso! E eu nunca fui republicano. O que disse numa nota da Pátria [1896] foi que tudo dependia do rei... O rei foi D. Carlos – e então a república impôs-se. Mas o mal não é do regímen, o mal é da nação E agora vamos acabar... »
Num registo de Maio de 1923, Brandão fala-nos de um segundo telegrama:
« Desde que adoeceu, isto é, pelo menos desde 1921, Junqueiro não cessa de debater com a sua consciência o mesmo problema. Arreda tudo. Quando em 1922 pensaram em lhe fazer uma grande manifestação nacional, Junqueiro respondeu a António José de Almeida num telegrama, pouco mais ou menos nos seguintes termos: - Paz – silêncio – morte. »
Guerra Junqueiro faleceu no dia 7 de Julho de 1923. São estas as últimas linhas que Raul Brandão dedica ao amigo, e fecham também o seu livro:
« Morreu naquela cama de ferro hoje de manhã, às cinco horas menos dezassete minutos, depois duma breve agonia. Não soube que morria. No caixão com o fatinho preto e coçado, espiritualizou-se ainda mais. Barba em bico, testa enorme, duas farripas aos lados e mãos esguias e brancas: parecia a figura de Nun’Álvares. Nem um livor cadavérico. A sala da frente está escura. À cabeceira brilha a chama de duas velas dum e doutro lado dum crucifixo com violetas. Sombras amarfanhadas ao fundo, e ao lado do caixão uma figura imóvel, com a manta pela cabeça, a velha Ana, que parece uma imagem de retábulo ou um daqueles humildes de que tanto falava e que lhe chamavam Senhor Poeta.
Olho-o e não me atrevo a julgá-lo. Nem por sombras! É exactamente o mesmo que me acontece com o atormentado Camilo. Se estes homens praticaram alguns erros, pagaram-nos bem caros, com dias de tortura e e de sensibilidade exasperada, dando-nos em espectáculo as suas dúvidas e a sua dor, em consciências que a sensibilidade é tão grande que até pesa fantasmas – enquanto os outros comem e digerem, digerem e comem, morrendo com a serenidade dos animais e dos justos. Sofrer é talvez um sinal da misericórdia de Deus. A vida eterna não se fez para as bestas!»

[ Citações tiradas do vol. II (1925) das Memórias de Raul Brandão, ed. 1999 por José Carlos Seabra Pereira. Não é costume citar-se esta extraordiária confissão de Junqueiro: “Nunca fui republicano”!... Mas, o mais importante parece-me : O “mal” não era do regime... Quanto ao “vamos acabar”, já temos visto aqui no Tonel que nunca mais acabamos... de acabar. É um velho temor do muito amor. ]