DIREITOS HUMANOS : UMA QUESTÃO DE DIGNIDADE
Na série de postais que aqui venho dedicando ao assunto, pus-me a mim e ao leitor uma primeira questão – se os Direitos Humanos eram inamissíveis ou, como se diz, “renunciáveis” -, questão suscitada publicamente por alguns juristas portugueses (desde pelo menos Jorge Reis Novais, em 1996). Respondi que a pretensão de tal renúncia equivalia a renunciar alguém a ser o que é: um ser humano. Entre outras, sobrou-nos a questão primaz, de fundo, a que necessariamente tem de responder o defensor dos Direitos Humanos inalienáveis: - o que é que há no animal humano de tão valioso que o faça titular digno de Direitos respeitáveis absolutamente em todos os indivíduos da espécie.
Vimos que da História contada ao modo naturalista darwiniano retirávamos uma indicação preciosa: tínhamos de encontrar esse Valor noutro lado. Era a contraprova da imperativa lição kantiana: não é na animalidade do humano, sim na humanidade do animal que o encontraremos. O grande filósofo alemão falou-nos duma Lei Moral livre e libertadora do “mecanismo da Natureza inteira” e das inclinações naturais do animal para a auto-preservação a qualquer custo, a busca do prazer e a evitação da dor (mas não necessariamente contrária a estas inclinações). Disse livre, e creio dizê-lo com a máxima propriedade kantiana: porque só quando o livre-arbítrio age moralmente (regrado por essa Lei Moral) é que a liberdade seria valiosa e, portanto, digna de respeito. Como tal Lei não deriva nem é imposta por nada de exterior à própria razão no homem, ela é para cada indivíduo a regra da sua própria autonomia enquanto pessoa racional convivente com outras pessoas racionais. Poderia, pois, defender-se que tal Lei é a condição única de toda a liberdade possível ? Não, não a possível, mas a razoável num ser racional. De facto, como o realista Kant não ignorou, é possível agir à margem ou até mesmo conceber-se um propósito (“maligno”, como lhe chama) de agir contra a Lei Moral.
Mas, temos então um problema: se essa Lei é a regra duma autonomia, agir contra ela não pode significar agir livremente (ou teríamos de distinguir entre autonomia e liberdade); e se o sujeito não age livremente quando age contra a Lei Moral, então como pode ser moralmente responsável e culpado pelo que faz ? Kant, firme na sua posição de sempre, manteve que, mesmo assim, tratava-se duma genuína liberdade – só que não uma liberdade digna de um ser racional e, portanto, não moralmente valiosa. Só que isto parece fazer a dignidade humana condicionada: se o livre-arbítrio decide por uma accção segundo a Lei Moral, portanto eticamente valiosa, o sujeito seria digno de respeito; se não, ele estaria a tomar a sua própria pessoa ou as outras pessoas apenas como meios, a acção dele seria moralmente não valiosa, e não se vê que direito (moral) tivesse ele ao respeito dos outros, que em casos extremos de legítima defesa pessoal ou colectiva poderiam até matá-lo. (Kant, é de lembrar, não questionou a permissibilidade moral e legal da pena de morte... ) Mas, neste caso, qual a diferença entre a acção amoral ou anti-moral do sujeito e a de alguém que não tivesse de si Direitos inalienáveis, ou que tivesse “renunciado” a eles?
Eis o problema que nos força a reexaminar os termos em que já o tínhamos posto aqui. – O “motivo determinante suficiente do arbítrio” ou “princípio determinante da vontade” (expressões usuais kantianas), precisamente enquanto só motivo, enquanto princípio, é transcendente às categorizações da “razão” e da “consciência moral”, como se pode supor quando o indivíduo age contra toda a razão e sem quaisquer escrúpulos; mas também nas muito banais e inofensivas decisões eticamente indiferentes e completamente irrelevantes (e. g.: quero levantar o braço que tenho pousado sobre a mesa e, com efeito, assim posso e assim acontece) para a vontade “legisladora universal” que a Lei Moral kantiana supõe. Mas, então, esse princípio, radicado para além do bem e do mal, que valor concebível teria? Talvez que nestes sentidos e termos (nem sempre lembrados) da mesma lexical família da palavra “valor” : uma força válida e valente para se impor por si; e que se faz ou faz valer. Vale como poder determinante. Um poder determinante não determinado por nenhum elemento daquela ordem de coisas que chamamos “Natureza”, e que em seu princípio é também transcendente às categorias da razão e da consciência moral; poder de determinar-se por si a favor ou contra a Lei Moral, e de produzir determinados efeitos dessa escolha, - é a Liberdade.
E valioso também nestes sentidos e termos : tal princípio de autodeterminação, que é a essência da vontade humana, não há nenhuma razão para crer que não se encontre igualmente em todos os indivíduos da mesma espécie, por isso mesmo (mas não só por isso) identificada em todos como “humana”. Por conseguinte, se aquela liberdade é valiosa, também a Igualdade da sua presença em todos o é.
É fácil de ver a compatibilidade destas duas propriedades com a revelação que o Cristianismo trouxe ao conhecimento do homem (para o homem se conhecer a si). – Se tal liberdade não pode ser explicada por nada na Natureza, a razão suficiente da sua existência há-de encontrar-se num Deus que a deu a todos os humanos. Todos são, por isso mesmo (mas não só por isso), “filhos” de Deus e, por conseguinte, é valiosa também a Fraternidade. (Ou “Solidariedade”, como hoje prefere-se dizer.)
De facto, a revelação cristã torna ainda mais transparente a dignidade da natureza humana. – Se esse princípio de livre (auto)determinação da vontade, que não pode ser determinada por nada do universo natural, também o não pode ser sequer pelo próprio Deus, então bem pode dizer-se existir no humano “à imagem e semelhança” de um Deus que livremente nos quis assim. (Está claro na narrativa do Genesis que a humanidade aparece primeiro à margem, mas prevenida, dos “frutos do conhecimento do bem e do mal”, de que podia ou não provar: a tal transcendência da Liberdade relativamente à Lei Moral.)
Diga-se, a propósito, que Valores que tais tornam ainda mais dificilmente explicável por uma causalidade meramente naturalista aquela enigmática faculdade que é a consciência humana pessoal – relação de si a si, como um “eu”, e relação a “outro” (humano, cósmico ou divino) - e também como consciência moral precisamente, axiologicamente sensível a coisas como ideais e deveres, e eticamente capaz dum comportamento regrado pela lei moral. Ora, se tais Valores são concebíveis, assumíveis e experienciáveis pela consciência, esta bem pode por extensão ter-se também como valiosa, digna de um respeito infinito. (Respeito infinito, segundo Kant, porque racionalmente vocacionada para a fruição infinita de um Bem infinito.)
Quanto ficou parece o bastante para responder à nossa questão da valiosidade duma natureza humana digna de Direitos absolutamente respeitáveis em todos os indivíduos, seja qual for a idade e condição natural ou social da sua passagem por este mundo. - Uma liberdade que nem o próprio Deus (se existe) pode obrigar, parece-me a mim coisa maximamente valiosa e respeitável. Mas sem a racional regra duma Lei Moral de igualdade e fraternidade também me parece coisa maximamente perigosa e indesejável: a “imagem e semelhança” pode muito depressa confundir-se com o próprio Deus, e nós temos visto o que deu a religião secularizada da idolatria da Liberdade, aplicada à política, desde o “Terror” revolucionário francês de finais de setecentos até aos vários terrorismos de hoje... De aqui a necessidade racional de uma ordem moral capaz de assegurar a viabilidade de algum prograsso histórico na realização colectiva daqueles Valores, progresso que, como o leitor pode ver, Kant fiava mais duma Providência divina do que (não é de mais sublinhá-lo) de qualquer institucional "educação".
Deixo sobre o meu dois textos do grande alemão que, na História da Filosofia, arquitectou o terminal monumento do classicismo a uma elevada e equilibrada Razão haurida nas originais fontes greco-latina e hebraico-cristã, levantado quando já por toda a parte começavam a crescer os impacientes romantismos da força “dionisíaca” da libertação de todos os limites e de todas as leis. Deste ponto de vista, Kant teve contemporânea uma personagem de não menor grandeza, a que já aludi num certo parágrafo do meu postal anterior, e que deitou assombradoras vistas para nós hoje, não menos (ou mais) familiares: o sr. marquês De Sade.
A ver se lhes marcamos aqui um encontro.
Vimos que da História contada ao modo naturalista darwiniano retirávamos uma indicação preciosa: tínhamos de encontrar esse Valor noutro lado. Era a contraprova da imperativa lição kantiana: não é na animalidade do humano, sim na humanidade do animal que o encontraremos. O grande filósofo alemão falou-nos duma Lei Moral livre e libertadora do “mecanismo da Natureza inteira” e das inclinações naturais do animal para a auto-preservação a qualquer custo, a busca do prazer e a evitação da dor (mas não necessariamente contrária a estas inclinações). Disse livre, e creio dizê-lo com a máxima propriedade kantiana: porque só quando o livre-arbítrio age moralmente (regrado por essa Lei Moral) é que a liberdade seria valiosa e, portanto, digna de respeito. Como tal Lei não deriva nem é imposta por nada de exterior à própria razão no homem, ela é para cada indivíduo a regra da sua própria autonomia enquanto pessoa racional convivente com outras pessoas racionais. Poderia, pois, defender-se que tal Lei é a condição única de toda a liberdade possível ? Não, não a possível, mas a razoável num ser racional. De facto, como o realista Kant não ignorou, é possível agir à margem ou até mesmo conceber-se um propósito (“maligno”, como lhe chama) de agir contra a Lei Moral.
Mas, temos então um problema: se essa Lei é a regra duma autonomia, agir contra ela não pode significar agir livremente (ou teríamos de distinguir entre autonomia e liberdade); e se o sujeito não age livremente quando age contra a Lei Moral, então como pode ser moralmente responsável e culpado pelo que faz ? Kant, firme na sua posição de sempre, manteve que, mesmo assim, tratava-se duma genuína liberdade – só que não uma liberdade digna de um ser racional e, portanto, não moralmente valiosa. Só que isto parece fazer a dignidade humana condicionada: se o livre-arbítrio decide por uma accção segundo a Lei Moral, portanto eticamente valiosa, o sujeito seria digno de respeito; se não, ele estaria a tomar a sua própria pessoa ou as outras pessoas apenas como meios, a acção dele seria moralmente não valiosa, e não se vê que direito (moral) tivesse ele ao respeito dos outros, que em casos extremos de legítima defesa pessoal ou colectiva poderiam até matá-lo. (Kant, é de lembrar, não questionou a permissibilidade moral e legal da pena de morte... ) Mas, neste caso, qual a diferença entre a acção amoral ou anti-moral do sujeito e a de alguém que não tivesse de si Direitos inalienáveis, ou que tivesse “renunciado” a eles?
Eis o problema que nos força a reexaminar os termos em que já o tínhamos posto aqui. – O “motivo determinante suficiente do arbítrio” ou “princípio determinante da vontade” (expressões usuais kantianas), precisamente enquanto só motivo, enquanto princípio, é transcendente às categorizações da “razão” e da “consciência moral”, como se pode supor quando o indivíduo age contra toda a razão e sem quaisquer escrúpulos; mas também nas muito banais e inofensivas decisões eticamente indiferentes e completamente irrelevantes (e. g.: quero levantar o braço que tenho pousado sobre a mesa e, com efeito, assim posso e assim acontece) para a vontade “legisladora universal” que a Lei Moral kantiana supõe. Mas, então, esse princípio, radicado para além do bem e do mal, que valor concebível teria? Talvez que nestes sentidos e termos (nem sempre lembrados) da mesma lexical família da palavra “valor” : uma força válida e valente para se impor por si; e que se faz ou faz valer. Vale como poder determinante. Um poder determinante não determinado por nenhum elemento daquela ordem de coisas que chamamos “Natureza”, e que em seu princípio é também transcendente às categorias da razão e da consciência moral; poder de determinar-se por si a favor ou contra a Lei Moral, e de produzir determinados efeitos dessa escolha, - é a Liberdade.
E valioso também nestes sentidos e termos : tal princípio de autodeterminação, que é a essência da vontade humana, não há nenhuma razão para crer que não se encontre igualmente em todos os indivíduos da mesma espécie, por isso mesmo (mas não só por isso) identificada em todos como “humana”. Por conseguinte, se aquela liberdade é valiosa, também a Igualdade da sua presença em todos o é.
É fácil de ver a compatibilidade destas duas propriedades com a revelação que o Cristianismo trouxe ao conhecimento do homem (para o homem se conhecer a si). – Se tal liberdade não pode ser explicada por nada na Natureza, a razão suficiente da sua existência há-de encontrar-se num Deus que a deu a todos os humanos. Todos são, por isso mesmo (mas não só por isso), “filhos” de Deus e, por conseguinte, é valiosa também a Fraternidade. (Ou “Solidariedade”, como hoje prefere-se dizer.)
De facto, a revelação cristã torna ainda mais transparente a dignidade da natureza humana. – Se esse princípio de livre (auto)determinação da vontade, que não pode ser determinada por nada do universo natural, também o não pode ser sequer pelo próprio Deus, então bem pode dizer-se existir no humano “à imagem e semelhança” de um Deus que livremente nos quis assim. (Está claro na narrativa do Genesis que a humanidade aparece primeiro à margem, mas prevenida, dos “frutos do conhecimento do bem e do mal”, de que podia ou não provar: a tal transcendência da Liberdade relativamente à Lei Moral.)
Diga-se, a propósito, que Valores que tais tornam ainda mais dificilmente explicável por uma causalidade meramente naturalista aquela enigmática faculdade que é a consciência humana pessoal – relação de si a si, como um “eu”, e relação a “outro” (humano, cósmico ou divino) - e também como consciência moral precisamente, axiologicamente sensível a coisas como ideais e deveres, e eticamente capaz dum comportamento regrado pela lei moral. Ora, se tais Valores são concebíveis, assumíveis e experienciáveis pela consciência, esta bem pode por extensão ter-se também como valiosa, digna de um respeito infinito. (Respeito infinito, segundo Kant, porque racionalmente vocacionada para a fruição infinita de um Bem infinito.)
Quanto ficou parece o bastante para responder à nossa questão da valiosidade duma natureza humana digna de Direitos absolutamente respeitáveis em todos os indivíduos, seja qual for a idade e condição natural ou social da sua passagem por este mundo. - Uma liberdade que nem o próprio Deus (se existe) pode obrigar, parece-me a mim coisa maximamente valiosa e respeitável. Mas sem a racional regra duma Lei Moral de igualdade e fraternidade também me parece coisa maximamente perigosa e indesejável: a “imagem e semelhança” pode muito depressa confundir-se com o próprio Deus, e nós temos visto o que deu a religião secularizada da idolatria da Liberdade, aplicada à política, desde o “Terror” revolucionário francês de finais de setecentos até aos vários terrorismos de hoje... De aqui a necessidade racional de uma ordem moral capaz de assegurar a viabilidade de algum prograsso histórico na realização colectiva daqueles Valores, progresso que, como o leitor pode ver, Kant fiava mais duma Providência divina do que (não é de mais sublinhá-lo) de qualquer institucional "educação".
Deixo sobre o meu dois textos do grande alemão que, na História da Filosofia, arquitectou o terminal monumento do classicismo a uma elevada e equilibrada Razão haurida nas originais fontes greco-latina e hebraico-cristã, levantado quando já por toda a parte começavam a crescer os impacientes romantismos da força “dionisíaca” da libertação de todos os limites e de todas as leis. Deste ponto de vista, Kant teve contemporânea uma personagem de não menor grandeza, a que já aludi num certo parágrafo do meu postal anterior, e que deitou assombradoras vistas para nós hoje, não menos (ou mais) familiares: o sr. marquês De Sade.
A ver se lhes marcamos aqui um encontro.
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