terça-feira, julho 20, 2010

O PESO MAIS PESADO

« O século XVIII usou a palavra “Lisboa” como hoje usamos a palavra “Auschwitz”. Que peso pode uma referência cruel transportar ? Não é preciso mais que o nome de um lugar para se obter este significado: o colapso da mais básica confiança no mundo, o ponto que torna a civilização possível. Ao perceberem isto, os leitores actuais podem sentir-se melancólicos: ditosa a época em que um tremor de terra podia fazer tais estragos. O terramoto de 1755, que destruiu a cidade de Lisboa e matou tantos milhares de pessoas, abalou o Iluminismo até à Prússia Oriental, onde um desconhecido académico menor chamado Immanuel Kant publicou três ensaios sobre a natureza dos terramotos num jornal de Konigsberg. Kant não estava sozinho. A reacção ao terramoto foi tão alargada como rápida.... »

Tais são as primeiras palavras da Introdução de Susan Neiman ao seu livro O Mal no Pensamento Moderno (original de 2002).

Numa das atoardas tão ao seu jeito, dizia o filósofo Nietzsche que tinha como seu ideal de humanidade um indivíduo que juntasse em si a inteligência subtil duma mulher judia com a disciplinada resistência do soldado prussiano. Eu acho que a resistência disciplinada a encontraria ele na maior parte das mulheres judias, não por judias, mas por serem mulheres; e que o tal ideal assenta tão bem ao próprio Nietzsche quanto à filósofa que foi capaz de escrever este livro. Mas isto não se deverá tanto a ser judia como simplesmente a não ter esquecido uma certa vocação: « como tantos outros, vim para a filosofia para estudar questões relacionadas com a vida e a morte, e ensinaram-me que a profissionalização exigia que as esquecesse. Quanto mais aprendia, mais me convencia do contrário: a história da filosofia era, de facto, animada pelas questões que nos levaram a ela. » É o que excelentemente diz a terminar a Introdução, mostrando no mesmo passo quanto o Mal está de facto presente desde as primeiras páginas do seu livro ( a profissionalização exigia que as esquecesse...), e que estamos diante alguém capaz de o enfrentar ( e fazer bem ao leitor que queira verificá-lo por si). Por mim, força por força, quereria antes a desta mulher aqui.

A referência a Lisboa ocorre em não poucas passagens do livro e, muito especialmente, nas págs. 270-280 do cap. IV, titulado “Sem-Abrigo”. O terramoto surge como o que de facto foi para a consciência europeia do tempo: um paradigma do “mal natural”, caído em cheio no meio do Iluminismo setecentista. O outro acontecimento é Auschwitz, como paradigma do “mal moral” que os humanos nos podemos fazer uns aos outros, num século iluminado pelos fornos crematórios e pela bomba atómica.

Para a autora, « o que se passou nos campos da morte de Auschwitz foi de um mal tão absoluto, como nenhum outro em toda a história da humanidade, que desafiou a capacidade humana de compreensão.» Desafiou e desafia. E o leitor verá se, quanto a isto, a filósofa Susan Neiman conseguiu ir mais além do que foi outra mulher judia de inteligência subtil – a filósofa Hannah Arendt. Julgo defensável que sim, mas descubra-o o leitor, que lhe recomendo vivamente o livro.
Se a capacidade humana de conhecimento terá limites kantianos, os da imaginação não parece possível demarcá-los “a priori”. Veja-se este contra-teste com que o filósofo italiano Georgio Agamben pretendeu responder ao teste de Nietzsche:

« Vamos imaginar que repetimos a experiência que Niezsche propôs, sob o título “O Peso Mais Pesado”, em A Gaia Ciência. Um dia ou uma noite, um demónio desliza para junto de um sobrevivente e pergunta-lhe: - “Queres que Auschwitz volte a acontecer repetidamente, vezes sem conta, queres que cada instante se repita pela eternidade, regressando-se eternamente à exacta sequência em que tudo aconteceu ? Queres que isto aconteça repetidamente por toda a eternidade ?” Esta simples reformulação da experiência é quanto basta para a sua refutação sem qualquer dúvida, excluindo-se a possibilidade de vir sequer a ser proposta. »

Antes de mais comentário, uma palavra é devida ao leitor que não tem de conhecer uma teoria que Nietzsche retomou e retocou da filosofia pré-cristã nestes termos: para uma Natureza eterna, espacialmente finita e temporalmente infinita, constantes os mesmos elementos fundamentais, as forças e leis que sobre eles actuam – então tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá nesta Terra ( e no restante universo) com todos os seres que a ela vêm, já aconteceu e acontecerá infinitas vezes, com exactamente os mesmos seres e acontecimentos, numericamente iguais entre si e pela mesma sequência, incluindo o esquecimento disso. Mas ao filósofo alemão interessava mais o aspecto existencial e ético da questão: só uma vontade capaz de aceitar e querer um tal cenário é que passaria o teste duma genuína “fidelidade à Terra” e total aceitação dos “valores da vida” (com seus bens e seus males).

A proposta de Agamben-Nietzsche pode ter consequências inesperadas. – Suponha-se que o “eterno retorno do mesmo” é a verdade, e há uma casta de “sobrehomens” dignos da revelação de “Zaratustra” que o sabem, e sabem-no de tal modo que não estão afectados pelo esquecimento. Tais seres sabem que Auschwitz aconteceu e voltará a contecer infinitas vezes... - no seu passado; e podem determinar-se a que isso não aconteça para si e seus descendentes. Nesse caso, Auschwitz nunca mais aconteceria para eles e seus descendentes (sempre e só para os seus ascendentes de memória curta).

- Eis a importância de preservar a memória de Auschwitz. -

Infelizmente há outra alternativa, mais congruente com o teste demoníaco proposto a Agamben. Um Mega Zaratustra viria anunciar que tais “sobrehomens”, ao permitirem-se seleccionar e excluir no passado coisas tidas como males “insuportáveis”, provavam com essa tentativa de fuga que ainda não tinham uma inteira “fidelidade à terra” e que,“demasiado humanos”, não estavam ainda completamente “para além do bem e do mal”. (Implícita, uma vez mais, a atracção da soberana equanimidade estóica diante do bem e do mal...) Os novos “hiper-sobrehomens” não só não deveriam recear como deveriam querer um Auschwitz ainda maior, para limpar esse pecado de ressentimento e fraqueza...

Assim, como é patente, também as consequências da famosa doutrina do filósofo que se queria “para além do bem e do mal” são trivialmente boas e más, como as de qualquer doutrina “demasiado humana”, com esta diferença a desfavor: não se vê o que esteja nela a fazer uma “vontade de poder” que é só servil duma Necessidade cósmica inexorável. Menos ainda: não se vê para que existe uma qualquer “vontade”, postulada a aceitação incondicional de tudo, incluindo todo o bem e todo o mal. E ainda menos, nada : nenhuma vontade; nenhuma diferença substantiva entre o bem e o mal, ambos constituintes essenciais da vida; e, se igualmente necessários, nenhuma possibilidade de um “para além” do bem e do mal que não seja afinal redutível à sobredita impassibilidade estóica, que o jovem Sade admirava.

Por seu lado, comenta Susan Neiman: « A experiência mental de Agamben é decisiva. Uma vez formulada, não pode imaginar-se ninguém suficientemente grotesco para a levar a cabo. » Não suficientemente “grotesco”, mas alguém suficientemente sádico: um torcionário nazi escapado impune aos campos de morte. Como vê, leitor, não nos livramos facilmente do senhor de Sade. A ver se no próximo postal.



[ Apesar de neste ponto se ter esquecido dele, o capítulo dedicado ao marquês pela autora no seu livro ( citei a trad. port. de Vítor Matos, 2005) é notabilíssimo, até pelo correctivo de razoabilidade que dá às fantasias dalguns maitres à penser franceses em moda de mancomunar Sade com Kant (!). ]