SÓCRATES E ANTÍSTENES
«Nada mais faço do que andar pelas ruas exortando-vos, jovens e velhos, a cuidar mais da alma que do corpo e das riquezas, para que vos torneis homens dignos.»
O mestre ateniense considerava por sua vez que era exortado a isto por uma “ordem do deus” e defendia que “nenhum bem maior foi concedido a esta cidade do que este meu zelo ao serviço do deus”. É que, segundo julgava, “a dignidade não vem das riquezas, mas, pelo contrário, é da excelência que derivam as riquezas e todo os mais bens, tanto para os particulares como para o Estado.”
Era o ideal socrático da Aretê, termo que podemos traduzir hoje por “Nobreza”, na esperança de se democratizar uma qualidade ou complexo de qualidades outrora referíveis a um estrato social que desmereceu e desapareceu. Um complexo entrançado ao longo dum projecto pessoal de vida, reproduzindo como padrões dominantes: amor à verdade e à justiça; hierarquização de valores (os “bens da alma” superiores aos “bens do corpo”); paciência na adversidade e tranquila aceitação da “sorte”; independência no juízo e coragem nos comportamentos. Correlativamente, uma luta sem tréguas contra todas as circunstâncias, manobras e poderes que ameacem ou prejudiquem o que faz a beleza e a bondade de um homem senhor de si: a essencial kalokagathia, na expressão platónica.
Antístenes, que a tradição fixou como promotor original das escolas cínica e estóica, filho de pai ateniense e duma escrava trácia, não tinha a cidadania inteira daqueles cidadãos que arguíram e acharam culpado de morte a Sócrates. Era um lutador e orgulhava-se disso. (Quando os mesquinhos atenienses lhe mordiam: -“Tu não és filho de dois cidadãos livres, como nós”… Respondia: -“Vós saís aos vossos como os macacos e os chacais saem aos seus. Mas os meus pais não eram os dois lutadores, e eu sou-o”…) Por seu lado, Sócrates, admirando-lhe a bravura, picava os seus concidadãos: - “Este, assim tão bravo, por certo que não podia ter saído de dois atenienses!”… Para ouvir estas e outras de Sócrates fazia bem a pé o nosso Antístenes, todos os dias, os dez quilómetros que separavam o Pireu, onde morava, do rossio de Atenas. E ao pé do mestre estava bebendo-lhe as palavras quando ele bebeu a taça do veneno mortal. Orgulhava-se de lutar contra as adversidades e de vencer distâncias e necessidades. Vivia muito com muito pouco. Um dia, revirava ao vento o manto esburacado que vestia de Verão e de Inverno, a ver se já estava enxuto. E atira-lhe Sócrates: - “O que é que vês por esses buracos? E o outro: -“Nada.” – “Pois eu estou a ver a tua vaidade!” Antístenes: - “Vê antes o manto, e verás tudo…” (Vaidade, vacuidade, vazio e nada, olhados para além do manto. Pois se visse alguma coisa de valia no esgarçado tecido das aparências, para que teria servido fazer-se filósofo? No tecido que este reveste está tudo…) Era o famoso tribon, um manto especialmente confeccionado por ele e que depois se tornou distintivo célebre de cínicos e estóicos como “o manto dos filósofos”. Ora, um discípulo que chama a atenção do mestre para o mágico tecido vencedor das grandes distâncias está, ele próprio, capaz de ser mestre. Foi-o efectivamente, mas de poucos, que poucos suportavam as asperezas do trato pessoal com um Antístenes que a muitos, diz a tradição, corria de fora si com um “bastão de ouro”. De ouro, ele, que era pobre? Quereria dizer a história que nem todos são reis os que deitam mão a um ceptro… Ou como quem diz também que as necessárias durezas do discipulato são muitas vezes a cura do médico que dói.
Antístenes morreu duma pneumonia. À cabeceira tinha o seu principal discípulo, Diógenes de Sinope, patrono deste blogue. Nas vascas da agonia o velho lutador conservava a suficiente humanidade destas queixas: - “Ah, quem me livrara deste mal!...” Diógenes puxa da cinta um punhal e mostra-o. A resposta foi a última lição do mestre: - “Queria que me livrasses do mal, não da vida!”
O mestre ateniense considerava por sua vez que era exortado a isto por uma “ordem do deus” e defendia que “nenhum bem maior foi concedido a esta cidade do que este meu zelo ao serviço do deus”. É que, segundo julgava, “a dignidade não vem das riquezas, mas, pelo contrário, é da excelência que derivam as riquezas e todo os mais bens, tanto para os particulares como para o Estado.”
Era o ideal socrático da Aretê, termo que podemos traduzir hoje por “Nobreza”, na esperança de se democratizar uma qualidade ou complexo de qualidades outrora referíveis a um estrato social que desmereceu e desapareceu. Um complexo entrançado ao longo dum projecto pessoal de vida, reproduzindo como padrões dominantes: amor à verdade e à justiça; hierarquização de valores (os “bens da alma” superiores aos “bens do corpo”); paciência na adversidade e tranquila aceitação da “sorte”; independência no juízo e coragem nos comportamentos. Correlativamente, uma luta sem tréguas contra todas as circunstâncias, manobras e poderes que ameacem ou prejudiquem o que faz a beleza e a bondade de um homem senhor de si: a essencial kalokagathia, na expressão platónica.
Antístenes, que a tradição fixou como promotor original das escolas cínica e estóica, filho de pai ateniense e duma escrava trácia, não tinha a cidadania inteira daqueles cidadãos que arguíram e acharam culpado de morte a Sócrates. Era um lutador e orgulhava-se disso. (Quando os mesquinhos atenienses lhe mordiam: -“Tu não és filho de dois cidadãos livres, como nós”… Respondia: -“Vós saís aos vossos como os macacos e os chacais saem aos seus. Mas os meus pais não eram os dois lutadores, e eu sou-o”…) Por seu lado, Sócrates, admirando-lhe a bravura, picava os seus concidadãos: - “Este, assim tão bravo, por certo que não podia ter saído de dois atenienses!”… Para ouvir estas e outras de Sócrates fazia bem a pé o nosso Antístenes, todos os dias, os dez quilómetros que separavam o Pireu, onde morava, do rossio de Atenas. E ao pé do mestre estava bebendo-lhe as palavras quando ele bebeu a taça do veneno mortal. Orgulhava-se de lutar contra as adversidades e de vencer distâncias e necessidades. Vivia muito com muito pouco. Um dia, revirava ao vento o manto esburacado que vestia de Verão e de Inverno, a ver se já estava enxuto. E atira-lhe Sócrates: - “O que é que vês por esses buracos? E o outro: -“Nada.” – “Pois eu estou a ver a tua vaidade!” Antístenes: - “Vê antes o manto, e verás tudo…” (Vaidade, vacuidade, vazio e nada, olhados para além do manto. Pois se visse alguma coisa de valia no esgarçado tecido das aparências, para que teria servido fazer-se filósofo? No tecido que este reveste está tudo…) Era o famoso tribon, um manto especialmente confeccionado por ele e que depois se tornou distintivo célebre de cínicos e estóicos como “o manto dos filósofos”. Ora, um discípulo que chama a atenção do mestre para o mágico tecido vencedor das grandes distâncias está, ele próprio, capaz de ser mestre. Foi-o efectivamente, mas de poucos, que poucos suportavam as asperezas do trato pessoal com um Antístenes que a muitos, diz a tradição, corria de fora si com um “bastão de ouro”. De ouro, ele, que era pobre? Quereria dizer a história que nem todos são reis os que deitam mão a um ceptro… Ou como quem diz também que as necessárias durezas do discipulato são muitas vezes a cura do médico que dói.
Antístenes morreu duma pneumonia. À cabeceira tinha o seu principal discípulo, Diógenes de Sinope, patrono deste blogue. Nas vascas da agonia o velho lutador conservava a suficiente humanidade destas queixas: - “Ah, quem me livrara deste mal!...” Diógenes puxa da cinta um punhal e mostra-o. A resposta foi a última lição do mestre: - “Queria que me livrasses do mal, não da vida!”
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