quarta-feira, outubro 03, 2007

TOMAZ DE FIGUEIREDO (1902-1970)




Em 1947, dos prelos da editorial Ática saía um romance cujos primeiros parágrafos soavam com esta arte: 
« Acima do portão, na verga quase vestida pela hereira que já amortalhara a pedra heráldica, a valer de baetão que a amantasse nos lutos, ainda lá se lia uma data, 1654, avivada pelo caseiro, por mimo, no tempo da poda, a riscos de caco.
Embora de teimoso castanho, abanados por entalões de carretos, chicoteados e entranhados por chuvas de invernos e invernos, os batentes do portão, lassos da corrosão das cunhas cinco dos seis chumbadouros, havia muito que não jogavam nos gonzos. Franqueados com abraços, o areão e o saibro dos enxurros caldeavam-nos à terra como se houvessem criado raízes, reverdecidos.
Portão e caminho até ao terreiro, sob a latada, quisera o dono continuassem escalavrados como no tempo ido, em que só ali vinha, e nem sempre, quando era pelas vindimas e varejadas de castanhas, lá raro pela feitura do azeite.
»


Chamava-se A Toca do Lobo e era o primeiro de Tomaz de Figueiredo. Logo no ano seguinte, não teve dúvidas o júri do prémio Eça de Queirós de o distinguir. Obrigações de funcionário público colocado longe da capital impediram o autor de o receber em pessoa: enviou ao júri uma Carta que, por ela só, mereceria outro prémio. Publicada num jornal, viria a fazer de prefácio ou posfácio em edições seguintes do livro premiado. Na Carta, Tomaz de Figueiredo dizia de certo caso a certo passo: «que, pelo andar que levam as coisas, tão já quase caídos como vamos num português básico, muitas palavras e dizeres de portuguesíssimo sabor passarão entre nós a obsoletos, e… hão-de continuar vivos na América: isto é, que por aí os luso-americanos (de assim tão patriotas serem, de tanto e tanto amarem a Língua), não tardará que melhor a conheçam e falem do que nós! Nesse dia (que remédio!) então se fará preciso chamar de lá quem no-la venha ensinar, pois que a pura Língua Portuguesa apenas será falada na América, apenas lá língua viva…»

Notastes o “quase”, escrito por meados do século passado: “quase caídos num português básico.” Hoje… Hoje devia haver um prémio para quem lesse e entendesse à primeira aquelas transcritas linhas iniciais do romance. Eu não fui capaz. Parece uma outra Língua… E é um outro mundo. “Prodigioso evocador do passado em verso e em prosa, em verso e prosa grande poeta da memória…” – julga David Mourão-Ferreira, e diz bem: “prodigioso” não é favor nem demasia. O leitor pode provar por si: entre naquela Toca ou, em verso, faça as maravilhosas Viagens no Meu Reino. Para o efeito é quanto basta. Mas faz-se preciso leitor não só apaixonado apreciador das capacíssimas virtualidades descritivas e expressivas do nosso vernáculo, em Tomaz unindo com gosto requintado a linguagem popular e o cultismo erudito de purista, como filigrana de complicada trama lavrada em metal precioso; será, também, compensada uma despreconcebida simpatia humana curiosa de saber como era a vida vivida numa Casa patriarcal do interior rural minhoto, nos princípios do século XX a defrontar-se com o assédio e ameaça da anti-vida burguesa, burocrata, plutocrática consumidora e hedonista. A esta, chata e sem relevo de Ideal nenhum, secante do corpo e da alma, aculeou-a Tomaz de Figueiredo com a contundência satírica e o sarcasmo implacável de condigna têmpera camiliana.

Altíssimo poeta da prosa, quem só publicara dois pequenos livros de poesia em vida vem agora revelar-se-nos um incomparável mestre-músico do verso branco decassilábico e um dos nossos maiores sonetistas de todos os tempos. (Cf. Poesia, Imprensa Nacional, 2003, em dois volumes: mais de um milhar de páginas por junto.)

Apartado na juventude das tão amadas terras do pátrio Vez, onde nunca mais pôde demorar, e apartado de si a ponto de sobreviver alguns anos internado em sanatórios psiquiátricos, este que viveu só do Coração e da Saudade morreu de ambos num anódino apartamento das avenidas novas lisboetas.

O leitor desejoso de conhecer um eminente representante de toda uma Literatura nossa ignorada ou censurada pelos responsáveis de saramargarem o gosto literário da nossa juventude estudantil com “nobéis” de pacotilha, terá neste endereço uma recepção simpática e uma apresentação decente:


http://www.tomazdefigueiredo.net/index1.htm

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostei da chamada de atenção para um autor que me era desconhecido e achei muito interessante aquela referência aos "luso-americanos".
Infelizmente, os da América do Norte, onde estive alguns anos, estão completamente abandonados pelos nossos governos quanto ao ensino e difusão da nossa língua e cultura.Ainda há pouco tempo, na ida lá do presidente Cavaco Silva, o presidente do Conselho das Comunidades Portuguesas lá se queixava desse abandono. Aqui só há dinheiro para o ensino do Inglês desde os primeiros anos da primária...
Para se avaliar da situação, basta ver os artigos destes emigrantes :
http://www.dightonrock.com/eutanasialingua.htm

11:52 da tarde  
Blogger Xor Z said...

Serve a presente para me congratular com o seu aparacimento, caro Pedro, também eu não conhecia o Tomaz que me pareece homem para ter em conta. À revelia do Alexandre, nós, os licenciados em filosofia chegámos ao poder aqui nesta barrica pois já constituimos 50% da população escrevinhadora. Agora a sério, em meu nome pessoal e nos dos restantes, embora não me tenham passado procuração, BEM VINDO.

12:59 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Tem razão o anónimo leitor a quem agradeço os textos esclarecedores e estarrecedores que indicou aqui.
Infelizmente o descaso não é só para com os luso-americanos. Enquanto esta ínfima classe politiqueira, desnacionalizada e deslumbrada com “a Europa”, continuar a tripudiar por cá, não há qualquer esperança. Esperanças, só nos lusófonos brasileiros e africanos. E nos imigrantes, entre nós. Como aquele jovem russo que, aos 16 anos, numa escola de Ponte do Lima, de tal maneira se apaixonou pelo nosso Gil Vicente que o andava a traduzir para russo!...

Agradecimentos também são devidos ao Alexandre, ao Xor Z e aos mais com quem espero aqui em breve erguer uma taça à saúde de Diógenes.

10:47 da tarde  

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