OS LATIDOS DE DIÓGENES ( 3º )
Já Antístenes, tão estimado de Sócrates, não se dava bem com Platão. Ainda menos o nosso Diógenes. Chegaram-nos histórias instrutivas sobre os mimos que se trocaram ambos. As duas seguintes bastam.
O Cão encontrou certa vez Platão e perguntou-lhe se lhe dava meia-taça de vinho e frutos secos. Prontamente, com pródiga generosidade aristocrática, o ateniense encheu-lhe a taça até ao bordo. E rosna-lhe o outro: - “Quando te perguntam quantos são dois mais dois, respondes tu que são dez?... Não me dás o que te pedi e não me respondeste ao que te perguntei.” E sem que Platão tivesse tempo de abrir a boca, ainda se viu mordido como… - “tagarela!”
“Perda de tempo” e “só conversa” era o que o Cão achava do ensino na Academia platónica. Confrontavam-se pois duas espécies de filosofia: uma, dominantemente especulativa, sistemática, enciclopédica, procurando com o discurso magistral ou o aconselhamento “técnico” influir directamente na vida e organização da polis; a outra, dominantemente prática, de poucas mas cortantes palavras, dando o corpo em manifesto duma reforma que o próprio indivíduo experimenta imediata e directamente, sem ilusões nem reivindicações sobre a natureza da vida social e política dos homens.
As demasias do “dez” platónico, enchendo as taças, multiplicando ideias e mundos, implicam-se noutra história. Dissertava o Académico sobre a ideia de taça e sobre a ideia de uma mesa: - “Por mim, ó Platão, vejo bem a taça e a mesa, mas não vejo nenhuma ideia de taça ou a ideia de mesa…” – “É que, para veres a taça e a mesa, bastam os olhos que tens; mas para veres as ideias, era precisa a inteligência, que te falta.” Desta vez foi o orgulho de Platão o último a falar, e a voz descendente dos velhos reis de Atenas impôs-se, soberana, pelos séculos adiante. Dos latidos do Cão, apenas ficaram mordentes anedotas e o perverso sentido que a palavra “cínico” carregou até aos dias de hoje, como se Diógenes fosse um Cálicles. O ateniense dizia que o mais importante não o escreveria, mas desunhou-se a escrever. O homem de Sinope, a alguém que lhe pedia um livro dele, respondeu: - “Para que queres tu letras gravadas em tecidos mortos se tens à tua frente a planta do autor viva?”…
Resta saber se o filósofo-escritor de academias e bibliotecas foi mais bem entendido que o Cão, começando neste. Ora veja-se este trecho no final desse maravilhoso monumento platónico que é o Górgias. Diz Sócrates a Cálicles: - « Deixa que te desprezem, te considerem insensato, te insultem se quiserem, e até, por Zeus, sofre que te esbofeteiem, coisa que tu achas entre todas infamante: não te acontecerá nenhum mal se fores realmente um homem de bem, dedicado à prática da virtude. »
Na tradução do professor Oliveira Pulquério, não dá isto o perfeito retrato dum sarnento vira-lata?... Ao nosso Cão parece que só faltou o bofetão.
Continuaremos a tentar descobrir a raça dele no próximo postal.
O Cão encontrou certa vez Platão e perguntou-lhe se lhe dava meia-taça de vinho e frutos secos. Prontamente, com pródiga generosidade aristocrática, o ateniense encheu-lhe a taça até ao bordo. E rosna-lhe o outro: - “Quando te perguntam quantos são dois mais dois, respondes tu que são dez?... Não me dás o que te pedi e não me respondeste ao que te perguntei.” E sem que Platão tivesse tempo de abrir a boca, ainda se viu mordido como… - “tagarela!”
“Perda de tempo” e “só conversa” era o que o Cão achava do ensino na Academia platónica. Confrontavam-se pois duas espécies de filosofia: uma, dominantemente especulativa, sistemática, enciclopédica, procurando com o discurso magistral ou o aconselhamento “técnico” influir directamente na vida e organização da polis; a outra, dominantemente prática, de poucas mas cortantes palavras, dando o corpo em manifesto duma reforma que o próprio indivíduo experimenta imediata e directamente, sem ilusões nem reivindicações sobre a natureza da vida social e política dos homens.
As demasias do “dez” platónico, enchendo as taças, multiplicando ideias e mundos, implicam-se noutra história. Dissertava o Académico sobre a ideia de taça e sobre a ideia de uma mesa: - “Por mim, ó Platão, vejo bem a taça e a mesa, mas não vejo nenhuma ideia de taça ou a ideia de mesa…” – “É que, para veres a taça e a mesa, bastam os olhos que tens; mas para veres as ideias, era precisa a inteligência, que te falta.” Desta vez foi o orgulho de Platão o último a falar, e a voz descendente dos velhos reis de Atenas impôs-se, soberana, pelos séculos adiante. Dos latidos do Cão, apenas ficaram mordentes anedotas e o perverso sentido que a palavra “cínico” carregou até aos dias de hoje, como se Diógenes fosse um Cálicles. O ateniense dizia que o mais importante não o escreveria, mas desunhou-se a escrever. O homem de Sinope, a alguém que lhe pedia um livro dele, respondeu: - “Para que queres tu letras gravadas em tecidos mortos se tens à tua frente a planta do autor viva?”…
Resta saber se o filósofo-escritor de academias e bibliotecas foi mais bem entendido que o Cão, começando neste. Ora veja-se este trecho no final desse maravilhoso monumento platónico que é o Górgias. Diz Sócrates a Cálicles: - « Deixa que te desprezem, te considerem insensato, te insultem se quiserem, e até, por Zeus, sofre que te esbofeteiem, coisa que tu achas entre todas infamante: não te acontecerá nenhum mal se fores realmente um homem de bem, dedicado à prática da virtude. »
Na tradução do professor Oliveira Pulquério, não dá isto o perfeito retrato dum sarnento vira-lata?... Ao nosso Cão parece que só faltou o bofetão.
Continuaremos a tentar descobrir a raça dele no próximo postal.
2 Comments:
Não representam eles, caro Pedro, duas das manifestações, ou linhas ou o que quiserem, mais essenciais da filosofia, isto é, da própria estrutura do pensamento humano. Embora, pacientemente reflectindo, eu ache, com Alberto Caeiro (se não foi ele corrijam-me)que ~há suficiente metafísica em não pensar em nada.
Cumprimentos para si e fico à espera, em ânsias, do seguinte.
"Duas manifestações da própria estrutura do pensamento humano"? Bem pode ser que sim, caro Xor Z. Que tem outras manifestações curiosas, como essa de "pacientemente reflectir" em... "não pensar em nada".
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