sexta-feira, dezembro 07, 2007

A LIÇÃO DO CÃO ( II )



Assim falando, Atena tocou-lhe com a sua vara:
Engelhou a linda pele sobre os membros musculosos
da cabeça destruiu os loiros cabelos; em todo o corpo
lhe pôs a pele de um ancião já muito idoso.
Obnubilou-lhe os olhos, outrora tão belos,
vestiu-o com outras roupas vis, esfarrapadas,
E uma túnica rasgada, imunda, negra de sujo fumo.
Pôs-lhe sobre os ombros a pele esfolada do veado veloz,
deu-lhe um bastão e um alforge miserável,
cheio de buracos e suspenso numa correia torcida


(Homero, Od. XIII, 429-438. Trad. Port. Frederico Lourenço)


Ulisses não deixou de ser o polymechanos, de continuar perito em esquemas de desenrascanço. Quanto à divina vara, o leitor lembra-se de já a termos visto… nas mãos de Antístenes; e passou a Diógenes, não ao rei Alexandre. Mas há quem não veja senão um nodoso varapau, anedotas e carapaus. Por isso, correndo o risco de maçar com repetições o que já nas linhas e entrelinhas dos postais anteriores ficou sugerido, permito-me insistir no seguinte.

Uma lição a tirar é a de que um válido, robusto e convincente “argumento” filosófico pode ser, mais que outro qualquer, uma boa história: uma encenação bem formada para informar a visão e o ouvido atentos e disponíveis do espectador com entendida ideia de o que conta e pesa mais na “realidade” da existência humana no teatro do mundo. Já lembrei aqui a associação de Sócrates a Eurípides e Esopo; lembro agora o quanto valorizou Platão as histórias dos “antigos”. Seguiam nisto a lição (ambígua) do grande Parménides. Mas estou em que os nossos filósofos caninos faziam mais e melhor: ou a toque de Atena ou com o patrocínio de Héracles, eram eles próprios os originais criadores, encenadores e actores do argumento que era todo o seu estilo de vida.

Outra lição supõe respondida a seguinte pergunta: - que espécie de experiência seria essa, capaz de transformar um banqueiro em um mendigo? Ora aqui, ai de mim!, tenho pena e vergonha de confessar ao leitor amigo que bati com o nariz numa porta… cinicamente fechada. “Reservado o direito de admissão”… a quem tiver a dita de encontrar e conviver pessoalmente com quem já lá está dentro e é senhor da casa. Nesta porta fechada temos as limitações das histórias de que não somos personagens intervenientes: indicam ao espectador um caminho, mas depois, se queremos mais, temos de ser nós próprios a entrar em cena. Ou podemos continuar a conversar agradavelmente no foyer dizendo, por exemplo, que o Alexandre Magno terá ido às florestas de Bengala incomodar o sadhu pacificamente sentado no dorso dum tigre, quando tinha ali à mão na Grécia outros capazes de dominarem os nervos do parassimpático a ponto de se fazerem parar o coração. E podíamos, daquela instrução do Gita, em que um deus explicita os motivos por que o guerreiro Arjuna, pungido de escrúpulos e antecipados remorsos, deve acometer rijo numa guerra fratricida, - chegar à mesma impassível e transcendente serenidade que seria precisa a um grego (ou a qualquer de nós) para comer a carne de familiares recém-falecidos, conforme o lembrado costume dos calacianos.

Podíamos chegar, disse? Podiam chegar aqueles que, “seguindo a natureza”, entravam calmamente sozinhos e nus por uma floresta adentro, a entenderem-se olhos nos olhos com tigres. Isto é uma porta trancada para nós: os tigres estão em extinção, como a nossa dominadora vontade, transferida para máquinas e trabalhos noutros domínios. Sobra apenas o medo? Então seriam domínios em que somos nós os servos. Felizmente, sobra-nos mais e melhor. As ironias da história contam que Diógenes morreu exactamente no mesmo ano do imperador Alexandre. Contemos nós com isto: pouco mais de três séculos depois, outra porta se abriu. Por um caminho estreito, trata-se de uma porta estreita

Mas ainda permanece aberta.