sábado, março 01, 2008

A "ENGRENAGEM MAL MONTADA"




Afinal, amigo, eu também nasci místico

“Sobre Espinho paira um céu gris, sujo e depressivo – um céu canalha. Imagine como estarão os meus nervos infelizes!” Esta impressão era suficientemente forte para Manuel Laranjeira a registar como post scriptum a uma carta, a última conhecida que enviou ao amigo Amadeu de Sousa Cardoso, em 9 de Junho de 1910. É um tipo de impressão que se repete e multiplica por muitos lugares do Diário e das Cartas; como nestoutra ao mesmo, de três anos antes: “Sobre Espinho está caindo uma bruma pesada, parda, e no meu espírito está-se formando uma nuvem gris, fria, álgida, húmida – como tédio. Este céu imóvel como o tampo duma imensa sepultura, se nos deixa respirar os pulmões, não deixa respirar a alma.” O leitor notou a transição do nome “gris”, que tantas vezes aparece nas suas páginas: passou do “céu” para “o meu espírito”.

Que fazer, sob um tal céu?

“Para nós, místicos desta vida moderna, sem Deus, sem outro ideal, a fórmula prática de realizar o ideal, de viver adentro do ideal, como o santo em Deus, - é trabalhar, trabalhar. Trabalhar é o único meio, actualmente, de compor a vida como uma obra de arte e uma obra de arte como a vida.” Eis o que dizia a 7 de Janeiro de 1908 ao amigo e pintor António Carneiro. O problema, para “um filho deste século”, como já vimos aqui, era “exigir à vida coisas que ela não podia dar.” O problema era o “ideal” que motivava ou orientava a feitura dessa “obra de arte”: - “Eu também caí na sandice de criar um ideal, de conceber a vida como um ideal de felicidades. Estou-o pagando. Claro: eu só poderia ser feliz vivendo a vida à altura do meu ideal, feita ideal, tal como eu a desejo… Veja que série de loucuras! Se a suprema sabedoria da felicidade – está precisamente em viver a vida sem ideal. É o que fazem os brasileiros e os nabos. Por isso são felizes. Em paz! Não os invejo, todavia. Nunca invejei o grotesco.” Noutra carta a Sousa Cardoso: “A felicidade mais duradoura sobre a terra é a dos imbecis, a do Lopes brasileiro – e essa, bem vê, é pouco invejável. Eu por mim, pelo menos, confesso-o: apesar das horas negras que me corroem, apesar do tédio que me arrasa continuadamente, não queria ser o Lopes, embora ele seja o máximo de felicidade actualmente sobre a terra. Quanto à que me adviria do oportunismo, isso seria bom se eu fosse oportunista. Mas por esse género de felicidade sinto eu uma boa dose de desprezo: isso é apenas o ideal dos sem-ideal. (…) Fico-me comigo e com as minhas tristezas –e fico melhor. Não os invejo, lamento-os. (…) Você verá o que é pensar com lógica – e sentir sem lógica: verá que o meu mal não é pensar demaiItalics: é sentir demais: são os conflitos da razão e do sentimento. Quando o sentimento diz: a tua felicidade está aí; vê-la? – a razão responde: vejo; mas vejo também que só seria felicidade em dadas condições. E se o sentimento exclama: mas assim é impossível obtê-la! – a razão responde glacialmente: exactamente! – é impossível: desiste, pois. O sentimento desiste. Sofre, sofre, mas desiste.” A ênfase nas palavras é do autor, que depois enfaticamente nega que os Lopes brasileiros (ou os “Esteves sem metafísica”, da Tabacaria…) sofram destas “tragédias sentimentais”: só de “insofríveis joanetes”.

“Fico-me comigo”… Consultando-se, o médico diagnosticava com notável precisão: “O meu grande mal, amigo, é este apenas – estar eu perdendo a fé em tudo e em todos.” Isto dizia ele apenas dois meses antes de iniciar os esperançosos artigos para O Norte, com que iniciámos esta série aqui. Queria crer; mas sabia que isso era “de quando em quando um lampejo de fé, que se extingue logo.” Quanto ao “místico da vida moderna”, com não menor precisão acertou em “compor uma obra de arte como a vida”: trabalhou anos num livro de versos em que soube condensar com eloquente simplicidade esses “conflitos da razão e do sentimento”. Comigo, foi o título que deu ao livro que nos deu. Publicou-o em 1912, e desistiu de respirar “sob este céu imóvel como o tampo duma imensa sepultura”.

Logo no espelho do título o leitor fica avisado de que é consigo: “comigo”… é connosco.


[A sanguínea é de António Carneiro (1872-1930)]