UMA ROCA DE CEREJAS
« As primeiras cerejas do ano aparecem na feira de Santa Cruz, em Lamego, no dia 3 de Maio. Vêm de Cambres ou da Penajóia. Por serem poucas, meia duzinha delas as que assim amadurecem temporãs, constituem mimo, próprio mais para regalar a vista do que o paladar. Tão escassa esta primícia, que é raro vender-se ao quilo. Vende-se, mas em rocas. Um pau ou uma cana rachada ao meio, com raminhos de cerejas entalados dum lado e doutro, folhas de cerdeira ou de laranjeira a enfeitar, aí está a roca. A roca tem cabo ou pé, livre de folhagem e de frutos, para se lhe poder pegar.
As primeiras cerejas cativam os olhos de toda a gente. Quem vê ou quem prova a primeira cereja exclama: Ano melhorano! – Há também quem diga, mais pausado: Ano, melhor ano!
As cerejas servem de adorno. Os boieiros prendem-nas às molhelhas dos bois. As crianças põem-nas ao dependuro das orelhas, como brincos. Mulheres há que demoram tempo infinito uma cereja rubra entre os dentes brancos.
A terra das cerejas é a Penajóia. Muito anchos desta regalia, costumam os da Penajóia dizer em Maio e Junho, quando alguém lhes pergunta de que terra são:
Sou da Penajóia!
A espada vai na burra!
Se quer alguma coisa,
Salte cá prà rua.
Fora do tempo farto, se alguém perguntar de que terra é a um da Penajóia, ouvirá a seguinte lamúria: - Sou da Penajóia, meu senhor… Daquela penada terra…
Contam-se estas coisas, mas não serão verdade. Como também dizem que os da Penajóia, se virem que o pássaro lhes foge com uma cereja, vão atrás dele até ao calcanhar do mundo, para que o caroço não fique em terra estranha.
Verdadeiro é o seguinte ditado, corrente em todo o Douro:
Do castanho ao cerejo
Mal me vejo.
Do cerejo ao castanho
Bem me abanho.
Abanho quer dizer avenho. »
Aqui ficou a sobremesa prometida ao leitor vindo da coroa do Barroso à majestade deste Doiro. As cerejas são da terra, mas quem las colheu e soube preservar o sabor… Quer saber quem é?.. A curiosidade vai-lhe custar a leitura desta nota do Diário da República de 25 de Janeiro de 1985, emanada do Ministério da Educação:
«Considerando os altos serviços prestados à causa da língua portuguesa como escritor e professor, pelo Dr. João Maria de Araújo Correia, cuja obra, de elevado quilate literário, mergulhando as suas raízes na região duriense e transmontana, exprime com espírito de universalidade os grandes valores nacionais e patrióticos, a começar pelo idioma;
«Considerando que, num momento em que o Ministério da Educação está empenhado na revalorização do ensino da língua pátria, a personalidade e o labor deste grande português podem ser apontados como exemplo às jovens gerações:
«Louvo a Dr. João Maria de Araújo Correia pelo seu notável contributo para a preservação e enriquecimento da língua portuguesa, ao longo de uma vida inteiramente dedicada, através da escrita e do trabalho criador, à defesa da dignidade e da liberdade dos homens.»
Era o dr. José Augusto Seabra nesse ano o ministro da Educação, quem mandava dar pública nota do louvor. O cidadão justamente louvado e citado pelo seu nome completo era o escritor João de Araújo Correia, poeta que ditava versos a sua mãe antes de saber escrever; médico fundador da Ordem dos Médicos, que exerceu como profissão de imperativa e compassiva humanidade até ele próprio não poder mais ter-se em pé senão como o português e o homem livre que sempre foi, e nos deixou com quase 87 anos de idade. Foi da qualidade daqueles que me fazem perpetuamente agradecido e gostosamente obrigado por ter nascido neste cantinho do mundo. Só ele é que me podia levar a fazer o que jamais contei suportar fazer: copiar um trecho da “folha oficial” e (mais ainda) trasladá-lo para um blogue respeitável como este. Mas bem no merece um escritor a quem Aquilino Ribeiro (mais velho 10 anos) tratava por “mestre”.
Merece o leitor mais, que por certo ficou augado com a curta (mas completa) “nota sertaneja”, inserta na miscelânea Sem Método, de 1938, a segunda obra do autor. Mais encontrará na recente antologia de contos publicada pela nossa Imprensa Nacional. E terá mais uma pequena amostra aqui no próximo postal.
Pois força é demorarmo-nos e dobrarmo-nos à majestade del-rei Douro, que regiamente nos pagará o serviço neste passo. O leitor lembra-se, quando, anda que anda, pela estrada de Chaves a Vila Real, começou a descer para Santa Marta, caminho da Régua (cerca da qual nasceu Araújo Correia): a passada larga em que vinha começa a travar-se-lhe, como se a força que retorce e dobra os troncos das videiras à terra o obrigasse a parar, a reparar; pôs-se a descer lentamente este anfiteatro, como se os socalcos de vinhedos fossem os degraus do Parnasso em Delfos; as pernas a tremerem-lhe, curva-se, dobra o joelho à terra; há um surdo rumor que lhe referve na alma a abismar-se naquele vale onde repousa o rio ao sol… e é como se tivesse acordado e viesse a si a rútila voz de um deus.
As primeiras cerejas cativam os olhos de toda a gente. Quem vê ou quem prova a primeira cereja exclama: Ano melhorano! – Há também quem diga, mais pausado: Ano, melhor ano!
As cerejas servem de adorno. Os boieiros prendem-nas às molhelhas dos bois. As crianças põem-nas ao dependuro das orelhas, como brincos. Mulheres há que demoram tempo infinito uma cereja rubra entre os dentes brancos.
A terra das cerejas é a Penajóia. Muito anchos desta regalia, costumam os da Penajóia dizer em Maio e Junho, quando alguém lhes pergunta de que terra são:
Sou da Penajóia!
A espada vai na burra!
Se quer alguma coisa,
Salte cá prà rua.
Fora do tempo farto, se alguém perguntar de que terra é a um da Penajóia, ouvirá a seguinte lamúria: - Sou da Penajóia, meu senhor… Daquela penada terra…
Contam-se estas coisas, mas não serão verdade. Como também dizem que os da Penajóia, se virem que o pássaro lhes foge com uma cereja, vão atrás dele até ao calcanhar do mundo, para que o caroço não fique em terra estranha.
Verdadeiro é o seguinte ditado, corrente em todo o Douro:
Do castanho ao cerejo
Mal me vejo.
Do cerejo ao castanho
Bem me abanho.
Abanho quer dizer avenho. »
Aqui ficou a sobremesa prometida ao leitor vindo da coroa do Barroso à majestade deste Doiro. As cerejas são da terra, mas quem las colheu e soube preservar o sabor… Quer saber quem é?.. A curiosidade vai-lhe custar a leitura desta nota do Diário da República de 25 de Janeiro de 1985, emanada do Ministério da Educação:
«Considerando os altos serviços prestados à causa da língua portuguesa como escritor e professor, pelo Dr. João Maria de Araújo Correia, cuja obra, de elevado quilate literário, mergulhando as suas raízes na região duriense e transmontana, exprime com espírito de universalidade os grandes valores nacionais e patrióticos, a começar pelo idioma;
«Considerando que, num momento em que o Ministério da Educação está empenhado na revalorização do ensino da língua pátria, a personalidade e o labor deste grande português podem ser apontados como exemplo às jovens gerações:
«Louvo a Dr. João Maria de Araújo Correia pelo seu notável contributo para a preservação e enriquecimento da língua portuguesa, ao longo de uma vida inteiramente dedicada, através da escrita e do trabalho criador, à defesa da dignidade e da liberdade dos homens.»
Era o dr. José Augusto Seabra nesse ano o ministro da Educação, quem mandava dar pública nota do louvor. O cidadão justamente louvado e citado pelo seu nome completo era o escritor João de Araújo Correia, poeta que ditava versos a sua mãe antes de saber escrever; médico fundador da Ordem dos Médicos, que exerceu como profissão de imperativa e compassiva humanidade até ele próprio não poder mais ter-se em pé senão como o português e o homem livre que sempre foi, e nos deixou com quase 87 anos de idade. Foi da qualidade daqueles que me fazem perpetuamente agradecido e gostosamente obrigado por ter nascido neste cantinho do mundo. Só ele é que me podia levar a fazer o que jamais contei suportar fazer: copiar um trecho da “folha oficial” e (mais ainda) trasladá-lo para um blogue respeitável como este. Mas bem no merece um escritor a quem Aquilino Ribeiro (mais velho 10 anos) tratava por “mestre”.
Merece o leitor mais, que por certo ficou augado com a curta (mas completa) “nota sertaneja”, inserta na miscelânea Sem Método, de 1938, a segunda obra do autor. Mais encontrará na recente antologia de contos publicada pela nossa Imprensa Nacional. E terá mais uma pequena amostra aqui no próximo postal.
Pois força é demorarmo-nos e dobrarmo-nos à majestade del-rei Douro, que regiamente nos pagará o serviço neste passo. O leitor lembra-se, quando, anda que anda, pela estrada de Chaves a Vila Real, começou a descer para Santa Marta, caminho da Régua (cerca da qual nasceu Araújo Correia): a passada larga em que vinha começa a travar-se-lhe, como se a força que retorce e dobra os troncos das videiras à terra o obrigasse a parar, a reparar; pôs-se a descer lentamente este anfiteatro, como se os socalcos de vinhedos fossem os degraus do Parnasso em Delfos; as pernas a tremerem-lhe, curva-se, dobra o joelho à terra; há um surdo rumor que lhe referve na alma a abismar-se naquele vale onde repousa o rio ao sol… e é como se tivesse acordado e viesse a si a rútila voz de um deus.
1 Comments:
Não é bem "meia duzinha de cerejas".
Hoje no mercado já havia bastantes e boas, só que muito caras, por enquanto.
Íam de 3 a 8 euros o kilo.
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