DIRECÇÃO DOURO
Pouco há vimos aqui em Junho de 1754 um inglês assaz excêntrico para nos procurar sem vir “Oporto”, de peito feito à feitoria, a levar-nos as pipas do fino e as grossas mais-valias. Nesse ano, azedavam as relações entre os vinhateiros portugueses e os ricos comerciantes do burgo portuense, e tanto que levaram o governo de Pombal a intervir e a criar, dois anos depois, a Companhia Geral das Vinhas do Douro ( a quem o marquês vendia a bom preço os vinhos da sua quinta… de Oeiras). Acolhemos com gosto mister Fielding, que não emborcou para emborcar, e vinha ocupado com bem mais graves problemas que os passados da finada feitoria: os problemas permanentes da companhia geral dos homens, que nenhum ditador pombalino ainda resolveu por nós…Entretanto, como bons serviçais portugueses, bem vestidos e agaloados com lacaia libré europeia, sirvamos outro turista.
Chegado na noite anterior, este só tinha olhos para os olhos da companhia amável que trazia, e não viu mais nada. Agora, abrindo os cortinados da janela à luz da manhã, uns longes de vista fazem sair à varanda do quarto o turista maravilhado e curioso. Uma pergunta impõe-se-lhe, inevitável: se eram homens ou titãs os que escadearam e esculpiram esse imenso anfiteatro de montanhas a descer para o fundão abrupto do rio… É o Douro! E eram homens os que desta Terra Quente tiraram a cálido vinho velho que ontem à ceia lhe serviram para abafar os doces: era « um fogo potável nos espíritos, uma pólvora incendida no queimar, uma tinta de escrever na cor, um Brasil na doçura, uma Índia no aromático»…
Mas quer ele saber agora quem eram estes homens que, se esculturaram e com tal arte humanizaram estes brutos cerros, bem capazes estavam de cultivar e civilizar qualquer parte do mundo. Lembra-se da turística brochura impressa, que por desfastio relanceou na viagem: falava de “Portugueses”, de “Descobrimentos”. Ah! Então eram estes? Eram, de facto, estes que desde Fevereiro até fins de Maio, às vezes meados de Junho, vinham de lá de cima de além Tua, pelo Pinhão, pela Régua, arriscando várias vezes a vida nos desnivelados saltos do leito – os “pontos” – com as águas a referverem em cachões e traiçoeiras restingas; em que à mínima falta de atenção ou de firme e pericial mão no leme as barcas se espedaçavam e o vinho se misturava com o sangue dos homens nas águas do torvo rio de “mau navegar”. Eram os orgulhosos “marinheiros” (como justamente a si próprios se chamavam) do Porto e de Gaia que, na embalagem das mortais acrobacias fluviais, bem puderam sair barra fora a navegar o mundo; e eram os mesmos que, subindo o rio a remos ou a sirgar, nos mesmos “pontos” alavam os rabelos à força de bois ou dos pulsos. Por causa deles, com partilhada justiça e sem a menor desvalia para o duríssimo trabalho do camponês, pode-se chamar do “Porto” o vinho nado e criado aqui. “Eram”, “foram”?...
O turista curioso quer sair a conhecer directamente o titã escultor destes montes, o “herói modesto, despretensioso e proteico que, mal comido e mal agasalhado, aos rigores de um Inverno de gelo e de um verão de fornalha, surriba, planta, enxerta, tesoura, poda, ergue, enxofra, sulfata, vindima, pisa e trasfega num afã sem descanso” (Torga). Num desvio do caminho estreito, murado de xisto, mete conversa com um ou outro dos que trabalham a terra: respondem-lhe em ucraniano, em senegalês ou paquistanês… Noutra altura, percebe com espanto que os alegres e tagarelas vindimeiros falam… a sua própria língua: são uns europeus ricaços que pagam “turismos rurais” para alombar com os cestos vindimos (50 a 60 quilos) de geio em geio, escaleiras arriba. E como vão ligeiros, felizes de andarem livres de morder o pó em tediosos aparelhos, nos seus ginásios climatizados! Mas, então, os “portugueses”, os tais dos “descobrimentos”?...
… Andam veleiros, de impecável bata branca, velando em esconsos laboratórios, navegando em meio de cursos superiores de enologia e computorizados processos de vinificação a descobrir como acertar todos os anos no “vintage”. E destarte terão alcançado fazer este vinho mais saboroso do que nunca terá sido? Sabem-no os deuses, que desertaram o Olimpo e ainda para lá não voltaram… Mas o turista não gosta de batas brancas sem nódoa de mosto, que não sejam lavadas num rio cheio de sangue, suor e lágrimas; não quer um plácido lago de águas barradas pelas barragens, mas uma levada selvagem como fio de dionisíaco riso!
O turista é exigente. Num caso assim, para lhe satisfazermos cabalmente a vontade, só vejo uma saída: levarmo-lo às caves, a conhecer quem lá temos em repouso. Eu disse “quem”; disse bem. Já no próximo postal, serviremos ao leitor deste Tonel uma das nossas melhores reservas.
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