sexta-feira, julho 11, 2008

“PENSAMENTOS INQUIETANTES E MELANCÓLICOS”…



Tanto quanto sei, entre os relatos célebres dos cruzados Osberno e Arnulfo, no séc. XII, e o visitador cisterciense francês Claude de Bronseval, nos começos do XVI, só um estrangeiro deixou memória escrita da sua estada entre nós. Era um cavaleiro polaco germanizado, da região da Silésia, de sua graça Nicolau Popielovo (ou Poplau, alatinado), que esteve em Portugal cerca de três meses, entre finais de Julho e princípios de Outubro de 1484. Seguiu depois para Espanha, donde também levou que contar. Não se sabe, ou não me lembra, por que bulas cá veio parar. Lembra-me que não lhe escaparam as semelhanças entre portugueses e galegos, frequentemente associados nos seus comentários, que são quase todos desagradados e pouco lisonjeiros para nós. Fixei uma amostra, em que literalmente nos varre como « grosseiros, tontos, incapazes de bons costumes, ignorantes, preguiçosos, destituídos de bondade e compaixão. Mais pretensiosos, mas não tão cruéis nem insensatos como os ingleses, embora mais feios.» Só encontrou uma excepção, para um indivíduo: o rei D. João II, muito elogiado, que o recebeu em audiência privada. Não admira, pois, que não tivesse demorado por cá, embora em Espanha não tenha encontrado melhor; e não desandou sem deixar a farpazinha racista: comparando a corrupção dos costumes da nossa arraia-miúda com os dos seus compatriotas (de que muito se louva), explicava-a pela « promiscuidade com os brutos sarracenos, respirando o seu ar pagão, selvagem e rude.»

A nota curiosa é ter-nos achado “destituídos de bondade e compaixão”, sem porquê (que me lembre). Isto vai contra a colectiva auto-percepção dos “brandos costumes” entre nós e da fraterna hospitalidade para com os estranhos. Pois será que este Nicolau Poplau soberbo e sumário não precisou de mais que três meses por cá para, entre as grosseiras vistas que nos deitou, ter frechado justo e certeiro um iluso preconceito? É que estou a lembrar-me, e lembrar-se-á o leitor, daquela observação do fino don Miguel de Unamuno: seríamos afinal “muito mais duros e ásperos” do que os vizinhos castelhanos: « la blandura, la meiguice portuguesa no está sino en la superfície; riscádela, y encontrareis una violencia plebeya…»

E “cruéis”, os ingleses ? Veja-se este apontamento do escritor e magistrado londrino Henry Fielding que, em Junho de 1754, embarcou em Redriffe no veleiro Queen of Portugal para Lisboa; vinha a conselho médico, por prementes razões de saúde, e o seu Diário de viagem foi, infelizmente, a última obra que o autor de Tom Jones escreveria. Fielding já nem conseguia andar pelo seu pé; teve de entrar no escaler e subir para o navio « transportado por homens que, embora suficientemente fortes para tal cargo, se viram e desejaram, como Arquimedes, para não perderem o pé.» Quando chegou a bordo vinha mais morto que vivo, e “o meu aspecto era certamente o mais horrível que se possa imaginar”. Pois nem “os sinais da doença avançada, se não mesmo da morte, na minha cara” o pouparam a isto: “tive que passar por entre filas de marinheiros e de barqueiros, exposto à provocação, parodiada da praxe militar, de toda a casta de insultos e de troças com que quiseram saudar a minha adversidade”. O gentleman polido e educado ainda era capaz de encontrar um apoio na arquimediana ironia. A sós no seu compartimento do navio, talvez lembrado da sua vasta experiência de chief justice em Westminster, não deixou de reflectir em mais um « exemplo bem vivo dessa crueldade e insensibilidade da natureza humana que muitas vezes observei com preocupação e me traz ao espírito pensamentos deveras inquietantes e melancólicos. Pode talvez dizer-se que este bárbaro costume é típico dos ingleses e deles só no mais baixo grau de malignidade; ou que é excrescência de uma licenciosidade confundida com liberdade, mas tal nunca acontece com gente polida e educada segundo requisitos de um aperfeiçoamento compatível com a humana natureza e a sua capacidade de expurgar a malevolência que, desde o nascimento, partilhamos com as criaturas selvagens. »

Tais degradantes praxes e javardas “excrescências da licenciosidade confundida com liberdade” lembraram-me logo as nossas actuais académicas que, de há anos, têm deixado indeléveis sequelas físicas e psicológicas em não poucos caloiros, com a minimizadora passividade das autoridades universitárias e judiciais; o que tenho como acabado exemplo da perversão completa de um meio que deveria formar “gente polida e educada” num “ensino superior”. Os luminares teóricos da pedagogia que têm insistido tanto, a nível do ensino secundário, na teoria das “atitudes e valores” e na “formação cívica”, fariam bem em reflectir nos resultados disso a nível universitário; isto se lhes sobrasse ainda alguma mínima fracção do bom senso realista do inglês Fielding.

Mas se o leitor acha, como eu, que não é de justiça cominar as “criaturas selvagens”, as pobres das “bestas feras”, aprecie agora a inteira medida do penetrante realismo do nosso autor, que prossegue logo após com pensamentos ainda mais inquietantes: « É o que se pode dizer e tudo o que se pode dizer; mas receio bem que seja insuficiente para justificar a brutalidade daqueles que se gabam de terem sido feitos à imagem do próprio Deus, mas no espírito têm impressa uma imagem parecida com a das mais ignóbeis espécies – ou antes: semelhante à ideia que fazemos dos demónios, pois que a nenhum bruto concebo que seja imputável tal perversão. »

Lembra-me ainda esse mês de Maio de 1985, em que os hooligans ingleses tinham provocado a tragédia no final europeia da liga dos campeões em Heisel, Bélgica; noutro campo de futebol, em Bradford, no mesmo mês, desencadeou-se um súbito incêndio no estádio lotado de gente e, enquanto lá dentro morriam queimados ou asfixiados para cima de meia centena de compatriotas seus, os hooligans cá fora cantavam, dançavam e atiravam latas de cerveja contra polícias e bombeiros…

Que espécie de animais se comporta assim? “Pois que a nenhum bruto concebo que seja imputável tal perversão”, é preciso procurar noutro lado, não a razão, onde nenhuma há, mas os mais fundos motivos do desalmado despejo; e o penetrante realismo do inglês, nada afectado pelas foscas “luzes” do iluminismo racionalista, não deixa de apelar a motivos fortes: a “semelhança de Deus” pervertida e captiva duma “semelhança demoníaca”. O motivo é ponderável, onde uma razão operando só com conceitos empiricamente testáveis é dramaticamente insuficiente.

Estes hooligans dos nossos dias são os mesmos supersticiosos praxistas de setecentos, os marinheiros que, em quinhentos, eram os piratas que infestavam as nossas costas e levavam os eremitas das Berlengas cativos para África; e todos são os mesmos companheiros de Osberno que, em 1147, em Lisboa traíram o acordo com o alcaide mouro para a rendição do castelo cercado e, entrando nele, saquearam, mataram e violaram à vontade. Nem sequer pouparam o velho bispo cristão moçárabe da cidade.

No próximo postal recuaremos e avançaremos mais no tempo. Se o leitor me quiser acompanhar, ofereço-lhe uma viagem, não de barco veleiro, mas de avião até… à “idade das cavernas”.


[ A tradução portuguesa dos trechos citados de Fielding é do prof. dr. João Manuel de Sousa Nunes. ]

1 Comments:

Blogger Pedro Isidoro said...

Adenda.

De facto, 33 anos antes do Nicolau Poplau, de 13 a 25 de Outubro de 1451, esteve entre nós um outro estrangeiro, que deixou um diário muito instrutivo sobres as festas realizadas então pelo casamento de D. Leonor, irmã do nosso rei D. Afonso V, com Frederico III,imperador da Alemanha. O memorialista integrava-se no séquito que vinha buscar a Imperatriz, e seria o seu capelão. Curiosamente também se chamava Nicolau - Nikolaus Lanckmann von Falckenstein.

9:28 da tarde  

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