quinta-feira, setembro 11, 2008

CARTAS ITALIANAS


Na Europa, os séculos XVI-XVII começaram a preparar os caminhos que o XVIII inflectiria decisivamente para a posição e trajectória que levamos hoje, em Portugal e no mundo. Ao leitor curioso de como viemos parar aqui e de qual o sentido dessa trajectória, as Cartas Italianas de Luís António Verney (1713-1792) abrem-nos de par em par as portas dos laboratórios onde se ensaiavam os catalizadores da profunda mutação cultural cuja reacção em cadeia ainda hoje vivemos e viveremos. O convicto experimentador da bondade dessas reacções era um português que, aos 23 anos, trocou a universidade de Évora por Roma, onde concluiria o curso de Teologia e Direito Canónico. Com 31 anos de idade, já tinha redigido as dezasseis cartas que constituíam um tratado completo e sistemático de uma reforma para a escola portuguesa, em todas as matérias e graus de ensino: o célebre Verdadeiro Método de Estudar, publicado em 1746.

As oito cartas, escritas entre 1765-66, agora apresentadas e traduzidas do italiano ao nosso vernáculo por Ana Lúcia Curado e José Manuel Curado, são a viva demonstração de que o escopo reformador estava longe de se limitar apenas ao campo pedagógico: ia desde as relações internacionais do Estado português até aos hábitos de vestuário das pessoas e tipos de rodas das carruagens que andavam nas nossas estradas. E mostram também que este português, que viveu no estrangeiro 56 anos, sem nunca mais ter voltado à terra em que nasceu, teve sempre Portugal diante dos olhos. Talvez nos tenha visto melhor que muitos que nunca de cá saíram. Às cartas “italianas” (escritas por Vernei a um correspondente português anónimo, e que serão talvez cópias de originais portugueses que se perderam), os tradutores juntaram nesta edição duas importantes portuguesas, escritas em 1751 e 1753: a primeira, sobre questões de crítica literária, de muito interesse para os estudiosos da nossa literatura de setecentos; e uma outra que é um longo diagnóstico da vida intelectual portuguesa na época, e bem poderia ser uma apostilha a uma moderna reedição do Verdadeiro Método.

Não vou cansar o leitor com o elenco de todos os assuntos abordados por Vernei em cada uma das restantes cartas traduzidas. Já ficou sugerido que são muitos e surpreendentes, de tão variados. Bastará dizer (aproveitando uma imagem feliz dos editores no respectivo prefácio) que são janelas escancaradas para um quadro pitoresco e minucioso de muitos aspectos da vida social e mental da época; um documento imprescindível para o historiador profissional como para o simples amador curioso. Janelas adentro, vemos bem que na casa é o tal laboratório que mais nos interessa – porque criou a paisagem onde habitamos hoje. De facto, se olharmos cá para fora, reconhecemos sem dificuldade um bem marcado trilho que parte da casa do Vernei preocupado com o estado das nossas estradas e a terra portuguesa de hoje, toda enfaixada de alcatrão.

Umas palavras são devidas – porque merecidas – aos tradutores das Cartas. Vernei foi obrigado a exilar-se para pôr a carruagem portuguesa a andar ao ritmo da Europa, mas, que eu saiba, não lhe pesou muito nunca mais voltar, mesmo quando o seu amigo Pombal era dono e senhor da situação. Estes dois jovens professores da Universidade do Minho, que representam do melhor que a nossa cultura universitária tem hoje, podiam estar a fazer uma brilhante carreira profissional em alguma das melhores universidades estrangeiras – mas preferiram ficar e apostar que, mesmo nas actuais circunstâncias, a cultura portuguesa pode chegar ao nível do que de mais exigente e de melhor se faz lá fora. E é facilmente argumentável que as circunstâncias sociais e culturais do presente e próximo futuro português são muitíssimo mais adversas que no tempo de Vernei. No século XVIII tínhamos uma cultura popular viva, e a erudita, se bem que não agradasse ao figadal inimigo da Inquisição e dos jesuítas, estava longe de ser desprezível. Hoje, temos uma cultura popular morta, e a erudita, graças à calamitosa política do ensino básico e secundário, em vias de quase geral apagamento. Basta citar o exemplo do ensino das línguas e cultura clássicas. E é duma cerração assim que logo sobressai o contra-exemplo brilhante da jovem Ana Lúcia Curado, que foi a última doutoranda e (pelo que vemos) pode ser a legítima herdeira dessa grande senhora das Humanidades que foi a Profª Drª Maria Helena da Rocha Pereira. A tese da novel doutora pela Universidade de Coimbra sobre As Mulheres em Atenas traz decisiva e dificilmente ultrapassável contribuição para o conhecimento de um até aqui recôndito e difícil objecto de estudo: a vida pessoal e social da mulher grega. Pois agora, através de uma minuciosa e argutíssima análise das alegações em processos judiciais produzidas pelos grandes causídicos atenienses (oradores como Lísias, Isócrates, Demóstenes, Ésquines e outros), Ana Lúcia Curado consegue dar-nos a ver a vida concreta, quotidiana das mulheres (e homens) atenienses de há dois mil e quinhentos anos tão bem ou melhor ainda que as Cartas de Vernei a vida europeia e portuguesa de há pouco mais de duzentos. Felizmente que a sua tese – espera-se que ainda neste corrente mês de Setembro - sairá editada para instrução e prazer dum mais vasto público.

Quanto ao professor Manuel Curado, é apenas jovem na idade e vitalidade dum operosíssimo labor: o vasto e variado currículo que já granjeou é o de um veterano mestre da alta cultura universitária portuguesa, capaz de ombrear com vantagem entre os melhores de qualquer das melhores universidades do mundo. Já aqui neste Tonel tivemos ocasião de assinalar um dos seus mais importantes livros – Luz Misteriosa. A Consciência no Mundo Físico (2007) –, que é uma reprodução abreviada e revista da parte mais substanciosa e original da tese de doutoramento aprovada cum laude pela Universidade de Salamanca. Que eu saiba, na bibliografia portuguesa, foi a primeira obra que levou a cabo, na perspectiva dos desenvolvimentos da tecnociência mais de vanguarda, um inquérito sistemático e de fundo ao problema da (in)discernibilidade entre a consciência que supomos “natural” na espécie humana actual – e a chamada “inteligência artificial”. Porém, a importância do livro está na própria tese que defende – inesperada, radical e capaz de surpreender o leitor até ao limite do suportável. Por mim, poucos livros tenho lido que me suscitaram tantas reservas, perplexidades e objecções como este. Mas ser desafiadora ao ponto de fazer tremer as nossas mais fundas convicções, sempre foi a virtude da melhor filosofia.

2 Comments:

Blogger MONTEIRO TENORIO, Raphael. said...

Lançamento instigante.

6:22 da tarde  
Blogger Mar Arável said...

Até ao limite do suportável

é um chamamento

12:37 da manhã  

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