"Coimbra, 22 de Outubro de 1950"
« Como uma onda que nenhum temor da praia detém, a vaga do “nihilismo europeu” de Kafka avança inexoravelmente sobre nós. Em casa, no consultório, no café, na rua, e até na mais remota aldeia que visito, um caruncho silencioso mas terrível esfarela os valores e a consciência deles.
Os livros que se escrevem, as lições que se dão, a sementeira ou a missa, não são actividades alicerçadas em nenhuma grande certeza humana ou esperança divina. Hábitos ou necessidades rudimentares, significam apenas que no homem também a lei da inércia se verifica. Sentimos todos ainda a responsabilidade de viver, mas em termos tão imediatos, tão fisiológicos, que a seta que devia sair do arco airosa e alada cai-nos aos pés tolhida pelo lastro de chumbo que lhe pusemos.
Fruto da mesma árvore social que nos gerou a todos, recuso-me contudo à degradação de encarquilhar passivamente no tabuleiro do desespero. Escrevo. E nada de mais cobarde e abjecto do que um artista que se desquita da solidariedade que deve às palavras que proferiu e às esperanças que movimentou.
A onda de nihilismo avança inexorável. Cheio do seu gelo e do seu terror, olho-a do areal com imperturbável coragem. A sua fúria, que tanto me faz sofrer e temer, nada poderá contra mim. Nem fraga para lhe resistir com a dureza da pedra, nem duna para me amoldar à sua vontade, sou no entanto um homem disposto a lutar. Morrer não tem qualquer importância, desde que seja a esbracejar. »
Miguel Torga, Diário, vol. V.
Os livros que se escrevem, as lições que se dão, a sementeira ou a missa, não são actividades alicerçadas em nenhuma grande certeza humana ou esperança divina. Hábitos ou necessidades rudimentares, significam apenas que no homem também a lei da inércia se verifica. Sentimos todos ainda a responsabilidade de viver, mas em termos tão imediatos, tão fisiológicos, que a seta que devia sair do arco airosa e alada cai-nos aos pés tolhida pelo lastro de chumbo que lhe pusemos.
Fruto da mesma árvore social que nos gerou a todos, recuso-me contudo à degradação de encarquilhar passivamente no tabuleiro do desespero. Escrevo. E nada de mais cobarde e abjecto do que um artista que se desquita da solidariedade que deve às palavras que proferiu e às esperanças que movimentou.
A onda de nihilismo avança inexorável. Cheio do seu gelo e do seu terror, olho-a do areal com imperturbável coragem. A sua fúria, que tanto me faz sofrer e temer, nada poderá contra mim. Nem fraga para lhe resistir com a dureza da pedra, nem duna para me amoldar à sua vontade, sou no entanto um homem disposto a lutar. Morrer não tem qualquer importância, desde que seja a esbracejar. »
Miguel Torga, Diário, vol. V.
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