sexta-feira, outubro 10, 2008

GENTE DA BORDA D’ÁGUA



« Quando, em 1888, éramos estudante de História e Geografia no liceu da Guarda… » Abre com estas palavras um excêntrico livro da bibliografia histórica portuguesa. O autor defende uma tese de larga visão, que nos leva além dos pintores do vale do Côa até à gente daquele Menino do Lapedo, essa estranha raça miscigenada de sapiens-sapiens e neanderthal, e mais além ainda, aos tempos em que os grandes rios da Ibéria corriam de oeste para leste… A visão começou assim:

« Na Guarda, favorecida da natureza por vastos e variados horizontes, em certos dias do começo da Primavera observam-se panoramas maravilhosos, de verdadeiro encantamento, tão belos, tão grandiosos e sugestivos que jamais são esquecidos. Logo ao romper d’ alva, todo o território para além dos sopés das serras da Gardunha, da Estrela e de Almançor aparece coberto de uma densa névoa murraçuda, baça e plana à superfície, que nos dá a aparência de um mar morto, de águas completamente paradas. Por cima dessa mar rutila o Sol envolto na sua auréola, resplandecente e criador, numa atmosfera diáfana de azul puríssimo.

« Quem subisse à base do castelo da Guarda observaria esse espectáculo grandioso, e, numa espécie de miragem, veria estender-se a seus pés esse mar, sem fim pela banda do oriente, que cobria a Castela-Velha, delimitado a norte pelas serras de Reboredo, Cimas de Mogadouro, de Colebra e da Pedra Negra, com suas ilhas a aflorar, de encantador recorte, banhadas de intensa luz, as dos Cabeços do Jarmelo, a da Serra da Marofa, e as do cabeço da Zamarra e do Teso Santo. Pela parte do sul estava circunscrito pelas ilhas dos Cabeços dos Arrassaios, das Fráguas e de S. Cornélio, através dos quais se avistavam as lagoas das Estremaduras portuguesa e espanhola, vislumbrando-se, para oriente, esse outro mar de Castela-Nova; continuava esse limite entre os dois mares pela serra das Mesas, Cerro da Jalama, serras da Gata, de Penha Garcia e de Gredos. (…)
« Ao contemplarmos esta impressionante paisagem, um pressentimento, como que uma voz íntima, nos segredava que bem poderia ser a imagem da configuração oriental desta terra lusitana, tal qual seria há muitos milhares de anos. »

Com o aromático dos nomes antigos, tem aqui o leitor um sabor das informações sempre precisas e detalhadas que enchem o livro. Também reparou decerto: águas, mares, lagoas, ilhas… E um “pressentimento”… uma “voz íntima”… Suficientemente fortes e inesquecíveis para, ainda em 1950, o seu autor – o sr. general João de Almeida – vir a conjuntar e sistematizar as investigações em que, desde 1903, trabalhava para fundamentar a tese que era o título desse livro: O Fundo Atlante da Raça Portuguesa.

De facto, esta tese ligava-se a uma outra apresentada pelo autor no seu acto de formatura pela Universidade de Coimbra, em 1901, na base de estudos efectuados no laboratório de Antropologia da mesma universidade, no Museu dos Serviços Geológicos de Lisboa e em “3. 535 mensurações antropométricas feitas sobre o vivo em indivíduos de todo o país”. Pretendia ele demonstrar « a existência de um tipo antropológico de características bem definidas, o qual teria existido há muitos milénios em todo o território moderno de Portugal, possivelmente constituindo os seus primeiros moradores. Designá-lo-emos por Tipo de Mugem, em atenção a terem sido os despojos humanos das jazidas daquela localidade que primeiramente estudámos (…). Com a nossa visita à região de Mugem, a feliz descoberta que fizemos das aldeias palafitas actuais [ diz o autor em nota que, em 1950, existiam 49 aldeias deste género, com 282 casas e 1 421 moradores ] e as investigações e mensurações antropológicas a que procedemos nos seus moradores, pudemos constatar de forma flagrante, clara e insofismável, que o tipo antropológico de Mugem, por nós encontrado e definido, vivia ainda hoje ali, ininterruptamente a mesma vida de há 20 ou 30 mil anos em toda aquela região ribatejana. » O doutoral júri aprovou a tese.

Há mais de 20 mil anos, notou o leitor, lembrando a idade do Menino do Lapedo. Estes humanos do habitat palafita da ribatejana Muge seriam, na tese de 1950, o Homo Atlantis , os descendentes directos dos habitantes do grande arquipélago (seria de facto um grande conjunto de ilhas e não um único bloco telúrico) que, para os finais do período geológico do plistoceno (há cerca de 20 000 anos) « foi submergindo e desaparecendo lentamente, pelo espaço de muitos milénios, até restarem em nossos dias os topos de certos maciços montanhosos, como os das ilhas dos Açores, da Madeira, das Selvagens e das Canárias, e as grandes moles da Britânia, da Lusitânia e Mauritânia, estas soldadas já à Europa e à África. »

Mais ainda: nas extremidades ocidentais destas terras esse afundamento tem continuado - e continua nos nossos dias. Já uma grande fatia das nossas serras da Boa Viagem, de Sintra, da Arrábida, de Sines e do Espinhaço de Cão – “que avançavam muitas centenas de quilómetros para sudoeste, na direcção da ilha da Madeira” – foi comida pelo mar; a grande extensão de terra continental que ia desde Peniche até a norte de S. Pedro de Muel submergiu há cerca de 2 500 e só deixou sobre a linha de água as Berlengas e Farilhões; “nas costas do noroeste da Europa, o afundamento anda anualmente por uns dois ou três centímetros”… Portanto, amigo leitor, não é só o degelo dos polos nem o peso do betão e da multidão nas arribas do litoral. E bem podemos andar de afogadilho a dragar areias do fundo dos rios para continuarmos com turismos balneares. Qualquer dia terei de me contentar de passar o Verão a deitar o anzol da varanda do meu apartamento na praia, e a descer do 3º andar, não para o carro, mas para um bote. E pensar que em 1974-75 voltámos as costas ao mar, para “entrar na Europa”… Mas o mar vem atrás de nós a comer-nos as costas… Não podemos fugir ao nosso fado: como aqueles migrantes da beira-mar de Ílhavo, de Ovar, da Murtosa e da Vieira, que no Inverno vinham pescar para as aldeias palafitas da riba-Tejo, - somos gente da Borda d’Água!

E mesmo que o mar nos não falasse à vista, retirados no interior dessa alta Guarda lusitana – “favorecida por vastos e variados horizontes” -, nem por isso o deixaríamos de ouvir: “como que uma íntima voz”… um “pressentimento”…

… « Na nossa infância, meu Pai, sempre que presidia à ceia, no final, depois de se darem Graças a Deus e de se ter rezado pelas almas dos nossos avós e parentes, terminava a reza: “Pelas almas do Purgatório…, por aqueles que andam sobre as águas do mar, que Deus os leve a bom porto e salvamento, e por aqueles que ficaram soterrados no fundo das águas do Atlântico, para que Deus tenha a sua alma em descanso”. (… ) E de igual forma se rezava naquele tempo em todos os lares da Beira. »



[ Não sei se o guardense ilustre que foi o sr. general João de Almeida (1873-1953) está hoje na sua terra mais afundado no olvido que a Atlântida. Sei que no bonito Museu Militar lisbonense o visitante tem à vista um expositor inteiramente dedicado ao soldado que trouxe de África o nome e a fama de “herói dos Dembos”. ]