sexta-feira, janeiro 30, 2009

CUIDADO COM O CÃO



« Segundo as últimas notícias, este pobre Peregrino, ou antes Proteu, para os íntimos, acaba de se finar como o Proteu de Homero. Por amor da gloríola, já o tínhamos visto em todas as figuras possíveis e imagináveis. Pois agora, para acabar em beleza, vestiu-se de fogo aquele que na verdade já ardia duma ardente paixão. Eis o nosso homem reduzido a um bocado de carvão, como Empédocles. Há, todavia, relativamente ao seu predecessor ilustre, uma diferença: este, antes de se lançar na cratera fundente do Etna, preveniu-se de olhares indiscretos; aquele, ao invés, imolou-se diante uma multidão de papalvos, subindo solenemente as escadas para a enorme fogueira, não sem anunciar aos Gregos o fumoso desígnio, com muitos detalhes e justificações, antes do espectáculo.

« Imagino-te a morrer de riso à lembrança deste velho senil, e parece-me que te ouço: -“Que absurdidade! Que desmarcado orgulho!” – e mil outros qualificativos do género. Mas, se é longe dos factos que fazes ouvir a tua indignação, fica sabendo que foi ao pé da mesma fogueira que eu despejei o saco da minha, e disse tudo o que pensava da comédia, em meio dos espectadores escandalizados com a minha reacção. De facto, eles, na maioria, estavam cheios de admiração pelo número do velho idiota. »

São, quase na íntegra, os dois primeiros parágrafos do opúsculo De Morte Peregrini, que anunciei no postal anterior. Luciano de Samossata escreveu-o em forma de epístola a um amigo, Crónio, e é quase a única fonte que nos chegou da existência deste estranho Peregrino, apodado de Proteu. Os parágrafos citados dão o tom de como o comediógrafo Luciano “despejou o saco” das velhas contas que saldou com a trupe dos cínicos pseudo-filósofos e embusteiros.

Peregrino teria nascido em Pário, na Mísia, onde ficava a velha Tróia das ilíadas aventuras homéricas. Mal saído da puberdade já andava a dormir com uma mulher casada; depois violou um rapaz; acabou por esganar o próprio pai, idoso, “não suportando a degradação física” do velho. Foi mais que bastante para se ver obrigado a fugir da cidade natal. Desceu à Palestina. Aqui, insinuou-se entre os cristãos e instruiu-se nas suas doutrinas, “impregnou-se dos seus textos sagrados” e (não é claro porquê) acabou na prisão; parece que o seu prestígio aumentou aos olhos dos seus correligionários na fé a ponto de o considerarem… um “novo Sócrates”! O governador da Síria não lhe achou culpa e libertou-o. Volta à Mísia, “em companhia de um bando de cristãos devotos” (talvez uma missão de apostolado) e acaba aclamado pelos concidadãos com “Viva o filósofo! Viva o émulo de Diógenes e Crates!” (Crates era o marido desta bela aqui.) O prestígio desfez-se quando o “apanharam a comer uma carne interdita” (os cristãos palestinenses mantinham os costumes judaicos). Abandonado dos companheiros, dirige-se ao Egipto. Aqui, frequentou Agatóbolo, que, como vimos, foi um dos mestres de Demonax; agora diz Luciano que ele instruiu o Peregrino “no ofício que ele exerce hoje.” E qual era? « Com o crânio todo rapado e a cara suja de bosta, masturbava-se em público sem a mínima vergonha, coisa que os cínicos consideram muito natural.» Chega à Itália, onde, na própria Roma, discursa contra tudo e todos, incluindo o César (provavelmente Antonino Pio). Expulso, vem à Ática, e tenta concertar os gregos contra Roma. Até que desce ao Peloponeso, onde se teria imolado pelo fogo, 4 kms a leste do estádio de Olímpia, no fim dos jogos que ocorreram em 165 d. C..


Num texto não isento de inverosimilhanças e até contradições (que fazem suspeitar não serem as primeiras palavras do primeiro parágrafo com que abri este postal apenas uma maneira de afivelar um irónico distanciamento), Luciano de Samossata compraz-se na descrição anedótica, numa diatribe furiosa e cruel supostamente proferida no local por interposta personagem anónima (“que impressionou toda a gente pelo seu bom humor e franqueza”), em resposta a um discurso lamentoso e laudatório dum sequaz de Peregrino: « - Agora que este parlapatão do Teagéneo acabou a loquela com lágrimas de Heraclito, é normal que eu comece o meu discurso com o riso de Demócrito…» E eis uma amostra deste risonho “bom humor”, que vai correndo o teclado da sátira, desde a ironia moralizadora até ao sarcasmo pesado de sugestões macabras:

« - Se ele deseja ardentemente morrer como Héracles, que nos deixe sossegados e, sem alardes, vá pegar-se fogo num monte recatado e ermo, levando o incondicional Teagéneo como Filoctetes. Mas não, o nosso impostor vem a Olímpia e é diante um numeroso auditório que ilumina a sua fogueira, como num teatro. Por Héracles, digo que esta morte lhe assenta como luva, pois que ele se dá o castigo dos parricidas e dos ateus! Mas é pequeno castigo, para as malfeitorias que cometeu: era dentro do touro de Falaris que ele devia assar, e não numa pequena fogueira, cujos fumos o asfixiarão logo que ele abrir a boca! Sim, muitas vezes me disseram que basta abri-la para morrer…»

Noutro passo, Luciano abre a boca para dizer isto:

« Ele acredita (ou antes, delira!) agir para o bem comum, inculcando nos homens o destemor da morte e do sofrimento. Pois eu gostaria de lhe pôr esta questão, que deixo antes a vós, cidadãos: - “Desejaríeis que os piores dos celerados pudessem troçar da morte, impassíveis ao terror que normalmente inspira um tal suplício?” Bem entendido, responderíeis franca e unanimemente “não”. Então como é que este Proteu pode crer ser ao mesmo tempo uma fonte de sabedoria para os bons e um modelo para os energúmenos? » Isto é: se os “maus”, seguindo os ensinamentos do filósofo, deixassem de temer os castigos mais temíveis, que poder é que o archistator Luciano e o seu César teriam sobre eles?... O argumento do retor e juiz não prevê que os “maus” se pudessem tornar “bons”… O que o preocupa é que os pacatos cidadãos, se insensíveis ao “terror”, tornar-se-iam “maus”. Na sua preconcebida má-vontade, recusa a concebível alternativa: que, se o Peregrino se não teme dar-se tal morte, é porque não seria assim tão “mau”… A isto podia o sírio responder o que repete várias vezes no texto: o cínico não queria na verdade morrer, mas armou-se um espectáculo para se fazer publicidade. Mas quem já não era novo, e tinha tantos sequazes, precisaria de arriscar uma tão perigosa manobra de marketing?

Como veremos para a semana, quase tudo o que o próprio Luciano conta da chegada ao local da auto-imolação do filósofo parece desmentir a injuriosa insinuação do comediógrafo. O suicídio de quem viveu como quis e quer ainda morrer quando e como quer, era uma marca comum dos cínicos, mais ainda que dos estóicos, como Luciano bem sabia. Do seu ficcionado modelo de urbanidade e virtudes cívicas – Demonax -, apesar de lhe não faltar alimentação e casa, conta-nos que, já quase centenário, « recusou-se a comer mais e deixou a vida tão alegre como sempre os seus amigos o tinham conhecido. » Mas o Peregrino, um proteico contestador da autoridade e perturbador da ordem pública, - comparar-se a Héracles e deitar-se fogo… parece que era de mais para o nosso urbano Luciano!



[Cave Canem, Cuidado com o cão!, era um aviso em mosaico frequente na entrada das casas de campo dos patrícios romanos. Muda-se o nome das classes sociais, mudam-se as próprias classes… A cor do medo não. ]