LIÇÃO A LICÍNIO
- Eh lá, bom homem! Por que é que tu andas com essas barbas e cabelos até à cintura, descalço, sem túnica, apenas com um manto enodoado e cheio de remendos, dormindo ao sereno com a cabeça sobre uma pedra, errante pelos caminhos como um animal feroz?...
Assim começa o opúsculo O Cínico, de Luciano de Samossata (c.120 - c.190 d. C.), famoso orador e gramático de origem síria que trabalhou na corte imperial e chegou a archistator (espécie de delegado judicial do governador romano) em Alexandria. No final da vida voltou a Atenas, que sempre fora para ele o farol de toda a verdadeira arte e filosofia, e lá morreu. Chegaram dele até nós cerca de oitenta obras que, pela elegância retórica e a cáustica mordacidade da sátira que exibe em muitas delas, lhe valeram ser conhecido entre os eruditos modernos pelo Voltaire da Antiguidade.
Quem entrava a perguntar daquela sorte era Licínio, um jovem e rico cidadão que, de viagem entre duas cidades, encontra à beira do caminho um filósofo cínico com quem entra em diálogo, e que permanece anónimo até ao fim da conversa. Conversemos nós também um pouco com ele, que o ano de 2008 passou tão depressa que nem me deu tempo a farejar mais alguns seguidores do nosso patrono.
O filósofo andrajoso convida o jovem ricaço a visitar a gruta onde se acoita, não longe dali. Seguindo adiante, caminhando sem dificuldade sobre tojeiras e urzes, saltando de penedo em penedo, deixa o jovem bem calçado para trás, que vai andando a custo, todo picado das silvas…
- Pareceu-te que me eram precisos sapatos?
-Não, de facto. E os meus de pouco me valeram. Mas continuo a dizer que a natureza, que tanto prezas, e os deuses puseram a terra à disposição dos homens; e permitiram-nos tirar dela uma enorme soma de bens para termos em abundância, não apenas o que satisfaz as nossas necessidades, mas também tudo o que nos dá prazer. Ora tu privas-te de todas estas vantagens e delas não aproveitas mais do que as feras selvagens. Vives como um cão, comendo o que encontras e dormindo onde calha. Não vejo virtude nenhuma em alguém viver privado de todas as delícias que, pela arte e engenho dos homens, somos capazes de tirar das coisas que nos deram os deuses: a lã quentinha, o saboroso vinho, uma casa bem acomodada, um leito acolhedor… Se alguém nos tirasse estas coisas, ficávamos como os prisioneiros nos calabouços da cidade, a quem se faz sofrer a infelicidade dos infelizes que despojaram. Mas se é o próprio que, voluntariamente, se despoja de tudo isso, com mais razão diríamos que não só é infeliz como insensato.
-Talvez seja como dizes. Olha, deixa que te conte uma parábola. Certa vez, um homem muito rico, magnânimo e generoso convidou para um banquete numerosos convivas de toda a região. Serviu-lhes na mesa uma enorme quantidade e variedade de iguarias. Aconteceu que um dos convidados se lançou sobre a mesa, açambarcou os pratos dos outros, comeu e bebeu a ponto de se levantar da mesa a trocar o passo e a vomitar para um canto. Parece-te este um homem sensato e moderado?
- De maneira nenhuma.
- E um outro que se sentasse à mesa, comesse apenas um prato e se levantasse satisfeito, caminhando ligeiro e direito para o ginásio, não te pareceria mais temperante e sensato?
-Sim.
- Então está tudo dito. Ou precisas que te explique?
Licínio precisou de mais explicações, mas o meu leitor decerto não, que se lembra de como Sócrates se levantou pela madrugada do Banquete platónico e caminhou direito para o ginásio. O diálogo prossegue com lances duma crítica social implacável para as necessidades e sujeições da vida urbana, com os senhores tão dependentes dos escravos como os escravos dos senhores. Ocorre a certo passo a evocação, pelo cínico anónimo, da grande figura tutelar do cinicismo – Héracles – e do “discípulo” deste, Teseu…
- Crês tu que Héracles, o mais forte dos mortais, esse divino homem que mereceu ser levantado ao nível dos deuses, foi um infeliz e obrigado a errar nu, só com uma pele de leão a cobrir-lhe o corpo, sem mais nenhuma das coisas que julgas tão necessárias? Pois estava bem longe de ser infeliz, esse que livrava os outros do mal; e longe de ser pobre, quem dominava terra e mar! Onde quer que o levasse a sua coragem tudo a si subjugava, sem encontrar igual, muito menos um superior, enquanto viveu entre os mortais. Crês tu que lhe faltariam roupas e calçado e que seria por isso que ele andava assim? Suposição absurda. Pelo contrário, era temperante e paciente; queria era superar-se a si, e não enterrar-se na moleza das comodidades. Teseu, discípulo de Héracles, rei dos Atenienses e filho de Posídon, segundo se diz, não foi também o mais valente herói do seu tempo? Todavia, também ele andava descalço e nu, deixando crescer livremente cabelos e barba, como os antigos. Nenhum teria deixado que lhos cortassem, como o não deixaria um leão.
Mas além da despreocupada preocupação com cabelos e barbas, o mestre interlocutor de Licínio diz-lhe que gostaria de ter por calçado os cascos do centauro Quíron… E prossegue:
- Pudera eu, assim como os meus amigos, não precisar jamais de oiro ou dinheiro. Todos os males dos homens não provêem senão da cupidez de riquezas – dissensões, guerras, burlas assassinatos não têm outra origem que a paixão de querer mais. Longe de mim essa loucura! Longe de mim essa fúria de possuir! Ao contrário, pudera eu ver diminuir os meus bens sem desgostos…
Parece que só lhe faltaria despojar-se do manto remendado. E então ficaria nu, como Teseu? Não, não como este. O nosso cão anónimo prepara-se um salto mais ambicioso. Eis o parágrafo terminal da conversa e da obra:
- Se queres conhecer bem este exterior de que troças, não tens mais do que voltar os olhos para as estátuas dos deuses. A quem é que eles te parecem mais? Aos teus concidadãos ou a mim? São eles representados cabeludos e barbados como eu, ou depilados como vós? E não aparecem sem túnica, como eu? Pois então como é que eu ousaria desprezar uma veste de que os deuses se honram?
Boa pergunta. O leitor reparou que ele falou de “os meus amigos”. Luciano de Samossata gostava de procurar e entrevistar os filósofos; parece que, especialmente entre os cínicos, se prezava de saber discriminar os cães de raça dos burlões rafeiros. Ainda havia bastantes de uns e outros, no séc. II depois de Cristo. Continuaremos a seguir-lhes no encalço, a tentar saber o que foi feito deles, onde se meteram e como desapareceram. Até um vira-lata como eu consegue farejar que há por aqui neste suculento osso mais alguma coisa que questões de barbearia.
[ Rosto da estátua de Um Cínico Desconhecido, no museu do Capitólio, Roma. ]
Assim começa o opúsculo O Cínico, de Luciano de Samossata (c.120 - c.190 d. C.), famoso orador e gramático de origem síria que trabalhou na corte imperial e chegou a archistator (espécie de delegado judicial do governador romano) em Alexandria. No final da vida voltou a Atenas, que sempre fora para ele o farol de toda a verdadeira arte e filosofia, e lá morreu. Chegaram dele até nós cerca de oitenta obras que, pela elegância retórica e a cáustica mordacidade da sátira que exibe em muitas delas, lhe valeram ser conhecido entre os eruditos modernos pelo Voltaire da Antiguidade.
Quem entrava a perguntar daquela sorte era Licínio, um jovem e rico cidadão que, de viagem entre duas cidades, encontra à beira do caminho um filósofo cínico com quem entra em diálogo, e que permanece anónimo até ao fim da conversa. Conversemos nós também um pouco com ele, que o ano de 2008 passou tão depressa que nem me deu tempo a farejar mais alguns seguidores do nosso patrono.
O filósofo andrajoso convida o jovem ricaço a visitar a gruta onde se acoita, não longe dali. Seguindo adiante, caminhando sem dificuldade sobre tojeiras e urzes, saltando de penedo em penedo, deixa o jovem bem calçado para trás, que vai andando a custo, todo picado das silvas…
- Pareceu-te que me eram precisos sapatos?
-Não, de facto. E os meus de pouco me valeram. Mas continuo a dizer que a natureza, que tanto prezas, e os deuses puseram a terra à disposição dos homens; e permitiram-nos tirar dela uma enorme soma de bens para termos em abundância, não apenas o que satisfaz as nossas necessidades, mas também tudo o que nos dá prazer. Ora tu privas-te de todas estas vantagens e delas não aproveitas mais do que as feras selvagens. Vives como um cão, comendo o que encontras e dormindo onde calha. Não vejo virtude nenhuma em alguém viver privado de todas as delícias que, pela arte e engenho dos homens, somos capazes de tirar das coisas que nos deram os deuses: a lã quentinha, o saboroso vinho, uma casa bem acomodada, um leito acolhedor… Se alguém nos tirasse estas coisas, ficávamos como os prisioneiros nos calabouços da cidade, a quem se faz sofrer a infelicidade dos infelizes que despojaram. Mas se é o próprio que, voluntariamente, se despoja de tudo isso, com mais razão diríamos que não só é infeliz como insensato.
-Talvez seja como dizes. Olha, deixa que te conte uma parábola. Certa vez, um homem muito rico, magnânimo e generoso convidou para um banquete numerosos convivas de toda a região. Serviu-lhes na mesa uma enorme quantidade e variedade de iguarias. Aconteceu que um dos convidados se lançou sobre a mesa, açambarcou os pratos dos outros, comeu e bebeu a ponto de se levantar da mesa a trocar o passo e a vomitar para um canto. Parece-te este um homem sensato e moderado?
- De maneira nenhuma.
- E um outro que se sentasse à mesa, comesse apenas um prato e se levantasse satisfeito, caminhando ligeiro e direito para o ginásio, não te pareceria mais temperante e sensato?
-Sim.
- Então está tudo dito. Ou precisas que te explique?
Licínio precisou de mais explicações, mas o meu leitor decerto não, que se lembra de como Sócrates se levantou pela madrugada do Banquete platónico e caminhou direito para o ginásio. O diálogo prossegue com lances duma crítica social implacável para as necessidades e sujeições da vida urbana, com os senhores tão dependentes dos escravos como os escravos dos senhores. Ocorre a certo passo a evocação, pelo cínico anónimo, da grande figura tutelar do cinicismo – Héracles – e do “discípulo” deste, Teseu…
- Crês tu que Héracles, o mais forte dos mortais, esse divino homem que mereceu ser levantado ao nível dos deuses, foi um infeliz e obrigado a errar nu, só com uma pele de leão a cobrir-lhe o corpo, sem mais nenhuma das coisas que julgas tão necessárias? Pois estava bem longe de ser infeliz, esse que livrava os outros do mal; e longe de ser pobre, quem dominava terra e mar! Onde quer que o levasse a sua coragem tudo a si subjugava, sem encontrar igual, muito menos um superior, enquanto viveu entre os mortais. Crês tu que lhe faltariam roupas e calçado e que seria por isso que ele andava assim? Suposição absurda. Pelo contrário, era temperante e paciente; queria era superar-se a si, e não enterrar-se na moleza das comodidades. Teseu, discípulo de Héracles, rei dos Atenienses e filho de Posídon, segundo se diz, não foi também o mais valente herói do seu tempo? Todavia, também ele andava descalço e nu, deixando crescer livremente cabelos e barba, como os antigos. Nenhum teria deixado que lhos cortassem, como o não deixaria um leão.
Mas além da despreocupada preocupação com cabelos e barbas, o mestre interlocutor de Licínio diz-lhe que gostaria de ter por calçado os cascos do centauro Quíron… E prossegue:
- Pudera eu, assim como os meus amigos, não precisar jamais de oiro ou dinheiro. Todos os males dos homens não provêem senão da cupidez de riquezas – dissensões, guerras, burlas assassinatos não têm outra origem que a paixão de querer mais. Longe de mim essa loucura! Longe de mim essa fúria de possuir! Ao contrário, pudera eu ver diminuir os meus bens sem desgostos…
Parece que só lhe faltaria despojar-se do manto remendado. E então ficaria nu, como Teseu? Não, não como este. O nosso cão anónimo prepara-se um salto mais ambicioso. Eis o parágrafo terminal da conversa e da obra:
- Se queres conhecer bem este exterior de que troças, não tens mais do que voltar os olhos para as estátuas dos deuses. A quem é que eles te parecem mais? Aos teus concidadãos ou a mim? São eles representados cabeludos e barbados como eu, ou depilados como vós? E não aparecem sem túnica, como eu? Pois então como é que eu ousaria desprezar uma veste de que os deuses se honram?
Boa pergunta. O leitor reparou que ele falou de “os meus amigos”. Luciano de Samossata gostava de procurar e entrevistar os filósofos; parece que, especialmente entre os cínicos, se prezava de saber discriminar os cães de raça dos burlões rafeiros. Ainda havia bastantes de uns e outros, no séc. II depois de Cristo. Continuaremos a seguir-lhes no encalço, a tentar saber o que foi feito deles, onde se meteram e como desapareceram. Até um vira-lata como eu consegue farejar que há por aqui neste suculento osso mais alguma coisa que questões de barbearia.
[ Rosto da estátua de Um Cínico Desconhecido, no museu do Capitólio, Roma. ]
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