DE LUCINO A PEREGRINO
« É justo também que fale de Demonax, e isso por dois motivos: primeiro, para que se conserve na memória, quanto em meu poder estiver, a lembrança de homens virtuosos; depois, para que os jovens bem nascidos e encaminhados para a filosofia não se vejam reduzidos a imitar modelos apenas nos antigos, mas que tenham diante dos olhos um exemplo do nosso tempo, e possam seguir os passos do mais perfeito filósofo que conheci. »
O letrado Luciano de Samossata, contemporâneo do imperador Marco Aurélio, não foi só imperador da sátira no seu tempo. O emérito comediógrafo tem obras mais sérias, e esta, que titulou com o nome Demonax, parece ser uma delas. Trata-se de uma pequena compilação de 67 parágrafos, que segue o género, tão típico e apreciado dos manuais de retórica alexandrina, das colecções de chreiai : são aforismos ou situações concisamente descritas que desenham um carácter-tipo (prossópon, o termo que os latinos traduziriam por persona e que, poucos séculos depois de Luciano se começaria a impor com tanta importância para o conceito ainda nosso actual da pessoa), um carácter ideal, exemplar, catalizador de emoções na disposição afectiva dos auditores ou leitores.
Já sugeri no anterior que o lucino escritor deitava umas luzes ambíguas sobre os filósofos do seu tempo, em particular os cínicos, que mais que outros lhe despertaram atenção, não sei se a mais precisa compreensão. Este Demonax, nascido de boas famílias de Chipre, teria tido como mestres um tal Agatóbolo, um Demétrio e o célebre Epicteto. Veio a viver a maior parte da vida em Atenas, onde teria morrido, velho de quase 100 anos de idade. Certo dia, « alguém lhe perguntou quais eram os filósofos que ele preferia: - São todos admiráveis; mas, quanto a mim, reverencio Sócrates, admiro Diógenes e amo Aristipo. » Diógenes é o cão de Sinope, guardador deste Tonel; Aristipo, discípulo de Sócrates, foi o fundador da escola Cirenaica e, se bem me parece, não só foi prezado pelo suposto Demonax como o preferido do nosso Luciano: foi o primeiro, antes de Epicuro, a desenvolver uma física e uma teoria do conhecimento perfeitamente coerentes com uma ética do carpe diem. Por outro lado, aquele “são todos admiráveis” é perfeitamente coerente com o ecletismo patente neste modelar Demonax, em que o pedagogo Luciano condensa o melhor daqueles venerandos gregos para os seus alunos romanos “bem nascidos e encaminhados”. Ou talvez antes para nós, amigo leitor. O facto é que nenhuma outra fonte coetânea conhecida, grega ou latina, menciona tal personagem, de tamanha grandeza e longevidade - «que os Atenienses, a Grécia inteira, tinham em tanta consideração que os magistrados se levantavam à sua passagem e toda a gente se calava em respeito, suspensos da sua palavra». Enfim, ficou a fama, que já hoje chegou à Lua, como o leitor pode ver olhando para cima. E facto é também que este hetrónimo Demonax, urbano, cordato, de falas mansas, “que não usou a ironia de Sócrates”, pouco tem de cão indómito e indomesticado. Mas não perde ocasião de, em lances tão ao gosto do ortónimo Luciano, se encontrar e desmascarar uns cínicos que, sob capa de filósofos, não passariam de vagabundos impostores e aventureiros. Seria o caso de um chamado Peregrino. No único parágrafo que se lhe refere, lê-se tão só isto:
« Peregrino, chamado Proteu, sentia-se de ele [Demonax] levar as coisas muito à ligeira e de fazer dos mortais assunto de riso: - Demonax – dizia ele – tu não tens caninos de cão. – E tu, Peregrino, não tens tripas de homem. »
É um trecho digno de reparo. Parece-me que o Peregrino acusa é o próprio Licínio-Luciano, no mesmo passo em que nos deixa transparente uma diferença, digamos temperamental, entre os sequazes de Aristófanes (que é quem se ri, por trás de Demócrito), e um Antístenes ou um Diógenes que (tal como Sócrates) picam como tremelgas ou mordem como cães, mas não ficaram na memória como hienas. A não-resposta de Demonax, colorindo manchas estóicas no pelame do cínico, interpreto-a assim: - “ Tu, que te pretendes a divina impassibilidade da natureza a respeito do homem, é natural que não saibas nem aprecies rir. Terás pois um tratamento especial.”
O tratamento que o risonho Luciano, que se ria de homens e deuses, veio a dar ao estranho Peregrino (este, sim, terá sido uma pessoa histórica), ficou reservado para uma obra que especialmente lhe dedicou, conhecida pelo título latino De Morte Peregrini. De que trataremos.
O letrado Luciano de Samossata, contemporâneo do imperador Marco Aurélio, não foi só imperador da sátira no seu tempo. O emérito comediógrafo tem obras mais sérias, e esta, que titulou com o nome Demonax, parece ser uma delas. Trata-se de uma pequena compilação de 67 parágrafos, que segue o género, tão típico e apreciado dos manuais de retórica alexandrina, das colecções de chreiai : são aforismos ou situações concisamente descritas que desenham um carácter-tipo (prossópon, o termo que os latinos traduziriam por persona e que, poucos séculos depois de Luciano se começaria a impor com tanta importância para o conceito ainda nosso actual da pessoa), um carácter ideal, exemplar, catalizador de emoções na disposição afectiva dos auditores ou leitores.
Já sugeri no anterior que o lucino escritor deitava umas luzes ambíguas sobre os filósofos do seu tempo, em particular os cínicos, que mais que outros lhe despertaram atenção, não sei se a mais precisa compreensão. Este Demonax, nascido de boas famílias de Chipre, teria tido como mestres um tal Agatóbolo, um Demétrio e o célebre Epicteto. Veio a viver a maior parte da vida em Atenas, onde teria morrido, velho de quase 100 anos de idade. Certo dia, « alguém lhe perguntou quais eram os filósofos que ele preferia: - São todos admiráveis; mas, quanto a mim, reverencio Sócrates, admiro Diógenes e amo Aristipo. » Diógenes é o cão de Sinope, guardador deste Tonel; Aristipo, discípulo de Sócrates, foi o fundador da escola Cirenaica e, se bem me parece, não só foi prezado pelo suposto Demonax como o preferido do nosso Luciano: foi o primeiro, antes de Epicuro, a desenvolver uma física e uma teoria do conhecimento perfeitamente coerentes com uma ética do carpe diem. Por outro lado, aquele “são todos admiráveis” é perfeitamente coerente com o ecletismo patente neste modelar Demonax, em que o pedagogo Luciano condensa o melhor daqueles venerandos gregos para os seus alunos romanos “bem nascidos e encaminhados”. Ou talvez antes para nós, amigo leitor. O facto é que nenhuma outra fonte coetânea conhecida, grega ou latina, menciona tal personagem, de tamanha grandeza e longevidade - «que os Atenienses, a Grécia inteira, tinham em tanta consideração que os magistrados se levantavam à sua passagem e toda a gente se calava em respeito, suspensos da sua palavra». Enfim, ficou a fama, que já hoje chegou à Lua, como o leitor pode ver olhando para cima. E facto é também que este hetrónimo Demonax, urbano, cordato, de falas mansas, “que não usou a ironia de Sócrates”, pouco tem de cão indómito e indomesticado. Mas não perde ocasião de, em lances tão ao gosto do ortónimo Luciano, se encontrar e desmascarar uns cínicos que, sob capa de filósofos, não passariam de vagabundos impostores e aventureiros. Seria o caso de um chamado Peregrino. No único parágrafo que se lhe refere, lê-se tão só isto:
« Peregrino, chamado Proteu, sentia-se de ele [Demonax] levar as coisas muito à ligeira e de fazer dos mortais assunto de riso: - Demonax – dizia ele – tu não tens caninos de cão. – E tu, Peregrino, não tens tripas de homem. »
É um trecho digno de reparo. Parece-me que o Peregrino acusa é o próprio Licínio-Luciano, no mesmo passo em que nos deixa transparente uma diferença, digamos temperamental, entre os sequazes de Aristófanes (que é quem se ri, por trás de Demócrito), e um Antístenes ou um Diógenes que (tal como Sócrates) picam como tremelgas ou mordem como cães, mas não ficaram na memória como hienas. A não-resposta de Demonax, colorindo manchas estóicas no pelame do cínico, interpreto-a assim: - “ Tu, que te pretendes a divina impassibilidade da natureza a respeito do homem, é natural que não saibas nem aprecies rir. Terás pois um tratamento especial.”
O tratamento que o risonho Luciano, que se ria de homens e deuses, veio a dar ao estranho Peregrino (este, sim, terá sido uma pessoa histórica), ficou reservado para uma obra que especialmente lhe dedicou, conhecida pelo título latino De Morte Peregrini. De que trataremos.
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