AVÉ MARIA
Lembras-te, ó alma,
Das tardes tão puras
Em que uma só rosa
Era já mais que o dia?
O cheiro do Maio
Achava no mar
Os ventos em rosa
De marear.
Passava de incenso,
À flor excedia,
E no mar tomava
Graça de Maria.
Depois, no profundo
Do peito selado,
À guarda do Anjo
Ficava fiado.
Sua alta espada
Era só sol: ardia
Como arde o que arde,
Nem se consumia!
Fio de guarda
Da porta sem passos,
Sem lama ou fecho,
Porta pura:
Em tudo e sempre aberta
À criatura;
Em tudo passagem:
Fímbria e ombro
De Nossa Senhora
Da Boa Viagem.
Ah! como Viagem
Só Via parece!
No passo difícil
A vida esmorece.
Que não há chão
Nem pé que o toque
Por uma vez:
Da falta de terra
A asa se fez.
Tudo isto, alma,
Era no Maio branco,
Era nas rosas leves
E nas ervas,
Nas línguas dos cordeiros,
Nos fios urdidos
Dos homens vestidos
De verdadeiros;
Na agulha do barco,
Na vela crua,
No sal das águas,
Na luz do charco,
No véu da Lua.
Era no dia claro,
Que, só dito DIA,
Se iluminava e se fazia;
Era no dia puro,
Que, só pensado,
Se estendia;
Só remoto, na onda do ano
Já gota de tempo,
Chorava e perdia
As horas compostas
De pinho e pão:
Tábua lavada,
Em cima a côdea,
E a alegria – uma lágrima,
Uma coisa de nada
De repente redonda
No nosso coração.
Tudo isto, alma,
Era no Maio: no tempo era
Que agora faz eterno
O homem que espera.
Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida (1953).
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