OUTRO PAÍS
« Portanto, o que foi o 25 de Abril? Foi uma semente que já tinha sido lançada por muitas pessoas que não gostavam que os outros fossem martirizados e então o que é que fez? Foi uma alegria que veio para Portugal para libertar a albarda do lombo. »
Um português anónimo de Trás-os-Montes, 27 de Junho de 1974.
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A partir das 21.30 horas da noite de 24 de Abril de 1974, começaram a chegar ao posto de comando instalado no Regimento de Engenharia 1 da Pontinha (Lisboa) seis militares: Otelo Saraiva de Carvalho (OSC), major e comandante das operações militares a levar a cabo pelo MFA (Movimento das Forças Armadas) na madrugada seguinte de 25 de Abril; Amadeu Garcia dos Santos (AGS), tenente-coronel de Engenharia, responsável pela instalação, montagem e operacionalidade de um sistema de transmissões que foi fundamental para o sucesso do Movimento; majores Hugo dos Santos e José Eduardo Sanches Osório (SO); tenente-coronel Nuno Fisher Lopes Pires; Vítor Crespo (VC), capitão-tenente da Armada.
Em 2004, cinco dos seis mencionados reuniram-se com o sociólogo Boaventura Sousa Santos (BSS) para memorarem em entrevista conjunta tudo o que de mais relevante lhes lembrasse dos quase dois dias em que viveram fechados nas instalações do comando; e também para comentarem e prestarem esclarecimentos sobre a “fita do tempo” ( na gíria do Exército, o nome dado ao registo manuscrito das operações militares efectuadas então ), que sobreviveu em autógrafo já publicado com a transcrição dessa conversa de há cinco anos. Seleccionei este trecho dela:
« AGS: Porque há uma coisa interessante… É o facto de ter as janelas tapadas com aqueles cobertores, nós perdemos... eu, pelo menos, perdi a noção completa das horas, dos dias. Que dia era, que horas eram.
VC: Já não sabíamos se era 26, se era 27.
AGS: Sempre às escuras.
OSC: E a nível de refeições, que eu me lembre, comemos sandes e umas cervejas.
BSS: Durante a noite?
OSC: Todo o tempo.
AGS: Tudo. Durante todo o tempo em que lá estivemos.
SO: Não, houve uma refeição…
OSC: Eu não me lembro de ter saído do posto de comando.
SO: Sim, sim, mas eu lembro-me que fiz uma refeição…
OSC: Estive lá desde as 10 da noite do dia 24 até às 13.30 da tarde do dia 26.
SO: Eu sei que fiz uma refeição na messe, que deu lugar a uma coisa, enfim, discutível, que foi o seguinte: havia que dar comida aos presos e a nós e não havia gente para a levar, de serviço, não é? De maneira que houve um jantar na messe. Não sei, exactamente, quem é que estava, mas estava a mesa… a mesa era comum e estava cheia e o oficial mais graduado que lá estava era o Ferrand de Almeida [o tenente-coronel do Regimento de Cavalaria 7 que se rendeu a Salgueiro Maia no Terreiro do Paço, sem aderir ao Movimento, ficando preso] e eu resolvi pôr o Ferrand de Almeida na presidência. Embora preso, era o oficial mais antigo e o Ferrand, que era aquele poeta que todos nós conhecemos, agarrou-se a mim num grande abraço, sentidíssimo até às lágrimas, com essa honra de estar a presidir, apesar de preso e tal, não sei que mais. Pronto.
BSS: Quantos presos? Qual foi o número maior de presos que lá estiveram? Quando saíram, quantos presos lá ficaram?
SO: Que lá ficaram… acho que não ficou nenhum.
(…)
VC: Agora, eu não posso deixar de dizer o seguinte: Quando saí da Pontinha, este país era outro. Completamente diferente. Eu vim a falar sobre isso com o Coutinho Lanhoso [ comandante da Armada e adjunto militar de Marcelo Caetano ] que, coitado, ainda vinha perturbado, mas reconhecia. Dizia-lhe: Você já viu a cara das pessoas, a animação, o bom ar? Era outro país, quer dizer, eu tenho, ainda hoje, essa sensação de frescura desse país.
BSS: De alegria.
VC: Da alegria deste país.
AGS: Que desapareceu. »
Vítor Crespo saiu às 11 horas da manhã do dia 26 do posto de comando com um prisioneiro ( o citado adjunto militar de Caetano ); atravessaram a cidade de automóvel conversando amenamente, e vão ambos apresentar-se no Ministério da Marinha, onde estava o chefe do Estado-Maior da Armada do regime deposto fechado no seu gabinete, sem se convencer a sair. E lá ficou. Vítor Crespo foi então para sua casa onde, até 30 de Abril, continuou a ter os mesmos vigilantes pides à porta…
Otelo Saraiva de Carvalho afirma ter sido o último a deixar o posto, às 13.30 de 26: « Toda a malta tinha desaparecido. Fiquei eu, estavam umas pistolas e umas granadas e tal, meti aquilo dentro das gavetas e não sei quê, fechei a luz, pumba, fui-me embora. Agarrei no carro. O meu carro tinha andado a fazer distribuição de rações de combate no Largo do Carmo e não sei, pá… » [sic] E na 2ª feira seguinte voltou às suas aulas de Táctica de Artilharia no Colégio Militar, onde era professor. E, quem sabe, aí teria ficado sossegado e “instaladinho” (como diz), não fora ter sido chamado para o comando da Região Militar de Lisboa. Talvez só então tenha começado a sonhar com os entusiasmos que, na tarde de 6ª feira anterior, ele vivera anónimo no meio da multidão que exigia a libertação de todos os presos políticos em Caxias, a gritar pela primeira vez entre nós “O Povo Unido Jamais Será Vencido”. A sonhar um sonho lindo que, cerca de 20 anos depois terminaria (pumba!)… num tribunal por terrorismo, com leve prisão breve indultada, e não sei quê e tal.
Tinha de terminar o alvoraçado êxtase (“perdida por completo a noção das horas”…) aberto naquela alvorada saída da “longa noite” de todas as tensões e repressões.
Para mim e para muitos que estavam então em Lisboa, será para sempre inesquecível o “bom ar” que se respirou nessa semana de 26 de Abril a 1 de Maio. Vergílio Ferreira, no primeiro volume da sua Conta-Corrente registava isto:
« 26 de Abril (sexta). Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir. »
Deveras, foi uma alegria que veio para Portugal!... Uma contagiante e partilhada desopressão de portas abertas para um mundo festivo, hospitaleiro, as pistolas e granadas abandonadas e trancadas numa gaveta; como se medo, desconfiança e hostilidade houvessem desaparecido de um mundo pacificado, onde só reinasse a inocência de crianças que tivessem calado para sempre a boca das espingardas com flores…
O leitor de certos sinais de vida dados na nossa existência histórica nacional, já tirou o significado do que venho citando e dizendo… - Eram os meninos coroados Imperadores, os bodos fraternais da abundância de carne, pão e vinho para os pobres, a libertação das prisões para os presos… (Ferrand de Almeida fora dos poucos a incitar ao combate em defesa do regime velho e, no Terreiro do Paço, podia ter causado um banho de sangue!) Por isso mesmo, se já pôde alguma vez estar sossegado a sós diante este quadro que memorei aqui, bem me entenderá o seguinte. – Foram esses dias lisboetas de Abril-Maio de 1974, dias como de um noivado alegre, prometido às núpciais bodas do Céu e da Terra… Mas porque não foram nem podiam ter sido nos factos e feitos deste mundo isso assim (como, logo a 25, disparando a matar sobre a população desarmada, a Pide se encarregou de mostrar); e porque, parolando tanto sobre “o povo”, não soubemos escutar a voz do povo que sempre disse que “a liberdade sem juízo é como pólvora nas mãos de menino”, esses dias tinham de terminar, como disse.
Mas não necessariamente numa tão geral e devastadora Catástrofe: com as populações ultramarinas, autóctones ou migrantes europeias, abandonadas e aprisionadas nas guerras dos imperialismos (incluído em Timor o javanês genocida) e dos ódios tribais, hoje reduzidas à miséria material e moral da corrupção e dos tráficos. Quanto a nós, logo em 1977, quando o escudo forte não pagou mais a festa feita farra, o que restava das reservas cambiais (em ouro, esgotadas as divisas já em finais de 75) era só o suficiente para nos caucionar um primeiro empréstimo externo, pedido aos Estados Unidos e concluído com um primeiro acordo com o FMI, que nos custou 50 mil desempregados; era o mesmo ano em que pedíamos a entrada na então CEE, que viria a ser assinada, como num perverso simbolismo de escárnio, em cima do 10 de Junho e no 6º centenário de Aljubarrota: e ficámos aprisionados ao Império europeu em expansão, no lugar de serviçal esplanada turística ou placa giratória de todas as traficâncias: não naquele posto de comando que era cabeça, rosto ou quase cume da Europa toda, ou falo disseminador dela pelo mundo, mas a cloaca ou fossa comum onde jazemos hoje.
Somos, desde a década de oitenta, em que Otelo e nós entrámos numa prisão… um outro país.
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