“CARTA ABERTA A SALAZAR”
Henrique Galvão começou a escrever o rascunho dela quando, pelos maus tratos sofridos de dois anos de prisão em Peniche, fora transferido para um quarto isolado no hospital de Santa Maria. Daqui teve artes de se evadir nas barbas dos pides que o vigiavam noite e dia. Um mês depois reapareceria na embaixada da Argentina, donde Salazar a muito custo o deixou sair asilado político, tendo a seguir passado para a Venezuela e Brasil. Neste entretanto fizera publicar a “carta enorme” de 12 capítulos e 108 páginas, datada de “Algures, 1 de Fevereiro de 1959”. Era e é um libelo enorme de pertinência e contundência crítica sobre a psicologia do ditador do “Estado Novo” e da sua obra política, como do estado da Nação à mercê delas. O ex-alto funcionário e apoiante fervoroso do regime conhecia-lhe bem os podres, os casos e figuras que não se coíbe de citar pelo nome ou transparentes alusões.
Apenas uns poucos extractos dela, que merecia transcrição integral. Os suficientes para o leitor experimentado bem avaliar pelo estilo da categoria do homem.
« Pois é verdade, meu caro Manholas Júnior: evadi-me das tuas garras, do teus ódios incansáveis, da tua Gestapo toda poderosa e seus algozes, das tuas mordaças, dos teus juízes, dos teus tribunais especiais, dos teus tiranetes enriquecidos e condecorados, dos teus gordos tubarões e idólatras mercenários, das tuas “notas do dia” e “notas oficiosas”, do teu exército de ocupação e respectivos generalecos, das tuas prisões e campos de concentração, do teu mercado de favores, dos teus discursos sem resposta, das tuas mentiras magistrais, da tua corte de vampiros e cretinos, dos teus veniais e pederastas, dos teus negreiros, dos teus eufemismos tartarufescos, da tua Idade Média – enfim, da tua Oligarquia, da tua Fazenda, do teu Rebanho.
Safei-me pelos meus próprios meios, sem colaboradores nem cúmplices, rompendo facilmente o cerco da tua PIDE, da tua tropa amedrontada, das tuas manadas de denunciantes – e ainda de outro cerco menos aparatoso de uma multidão de pobres castrados, medrosos, que me recomendavam “prudência e paciência” e até, por vezes, na sua apagada e vil tristeza, a rendição ou uma paz de compromisso. (…)
Como é provável que os idólatras que te restam – os que gulosamente roem os ossos fartos de que os alimentas, os que esperam em volta da gamela, e até alguns ingénuos ainda sinceramente convencidos da tua santidade (porque, enfim, há mais de vinte anos que sistematicamente os decapitas e porque as propagandas, nesta era do mundo, têm de facto poderes de tornar aceitáveis pelos ingénuos que só lêem os cartazes, as piores drogas para a calvície e para as mais hediondas políticas) – como é que provável, repito, que esses idólatras se indignem disciplinadamente contra as irreverências do tratamento que te dou e das cruas expressões de que me sirvo, embora sem “animum injuriandi”, respondo-lhes antes de ir mais longe, referindo brevemente, num mínimo de palavras, alguns factos que eles ignoram ou de que estão esquecidos.
Mandaste condenar-me sem provas há sete anos, por um Tribunal Militar constituído por generais do teu fabrico e ávidos de recompensas e pastas suplementares, e por um Juiz que, como se demonstrou em plena audiência, à data do julgamento devia estar na cadeia como delinquente comum – um juiz que se prestaria a todos os fretes para escapar de uma despromoção a Réu. Foi o tal Crispiniano de Lacerda, que até vocês, sempre tão benévolos para com os criminosos comuns da Oligarquia, tiveram mais tarde de empontar, tais as sujeiras que vos lançava na fachada.
Três anos de prisão maior; quinze anos de direitos políticos perdidos (pena a que, sem julgamento, já tinhas condenado quase todos os portugueses); confiscação dos meus únicos bens – a pensão de reforma; irradiação do Exército (única honra que me concederam). Ao cabo da pena, cumprida dia a dia, tornaste a mandar condenar-me (agora pelos sicários de um dos Plenários) também sem provas, em julgamento secreto e tão vergonhoso que, por dignidade própria, eu tive de declarar que me recusava a comparecer voluntariamente no tribunal, que só pela força lá me levariam e que, portanto, não colaboraria na farsa. E consegui realizar o meu intento porque, apesar da tua desenvoltura quando se trata de brutalidades, não ousaste confrontar-te com o escândalo de me fazer comparecer de colete de forças em maca carregada pelos burros da PIDE. Mais dezoito anos de prisão – digamos, prisão perpétua…. »
O extracto seguinte vai dedicado ao leitor mais distraído da História, e ainda esperançoso de haver alguma boa nova da monótona tragicomédia humana que dá pelo nome de “Política”:
« Hoje, em Portugal, tudo se compra e tudo se vende, em toda a parte: nas lojas e nos tribunais, nos armazéns e nos hospitais, nas fábricas e às portas das igrejas, nos escritórios comerciais e nas repartições públicas, - e com a mesma naturalidade e a mesma desenvoltura a mercadoria material e a mercadoria moral, automóveis e consciências, sabonetes e caracteres, máquinas de escrever e funcionários – até o Céu! Os funcionários portugueses que, ainda há trinta anos, eram, por dinheiro, dos menos venais do mundo, compram-se actualmente nos grémios, nas juntas, nas repartições de finanças e economia, seguindo o exemplo de alguns ministros, banqueiros e professores. Os mais mal pagos dedicam-se ao contrabando nas próprias repartições e serviços.
Que diabo, não posso dizer mais, que precisaria de centenas de páginas só para narrar o que sei de ciência certa! Creio que, como manifestações sintomáticas da corrupção generalizada e profundíssima, basta o que apressadamente escrevi aqui. ( … ) Cito uma vez mais o ex-deputado Jacinto Ferreira, que, no mesmo artigo atrás referido, acrescentou que tu, que és apregoado e exaltado na tua propaganda como virtuoso incorruptível, “és o maior corruptor da tua época e o consentidor das mais poderosas ondas de corrupção da História de Portugal”. Não pode dizer-se que este professor seja uma testemunha suspeita. »
(Não era suspeito porque o honrado e douto professor Jacinto Ferreira, monárquico da segunda geração integralista, fora até certa altura, presumo que até 50-51, um apoiante do regime, embaído na esperança de que este seria uma aceitável fórmula de transição para a restauração da Monarquia. Uma esperança que Salazar soube astutamente cultivar junto de muitos monárquicos.)
Um último extracto, do penúltimo capítulo, que remeto aos actuais frenéticos obreiristas de obras públicas para “animar a economia” dos orçamentos esbanjadores e sempre largamente excedidos, às custas da sobredívida do Estado e das gerações futuras:
« Foquei os aspectos mais lamentáveis da tua “verdadeira obra”. Não é o momento de esgotar o assunto. O que aí fica narrado e comentado basta aos objectivos imediatos desta enorme carta e, contudo, ainda curto documento.
Seria todavia apaixonadamente desleal passar em claro e negar que durante o teu catastrófico governo se realizaram muitas obras públicas (barragens, estradas, pontes, palácios, etc.); que foste um constante pedreiro das “obras mortas”, como diz António Sérgio, lamentando o teu desdém e incapacidade perante a sorte das “pedras vivas”; (…)
Algumas das obras puramente materiais são, independentemente do que custaram, incontestavelmente meritórias e úteis. E também é verdade que enquanto perdíamos espírito e alma, juntámos dinheiro – o que não é despiciendo para uma parte da população para a qual o dinheiro é tudo e a alma quase nada. (…)
Seria ingénuo, se reconhecendo o mérito de algumas realizações – que diabo, alguma coisa tinhas de fazer, até como derivativo do que destruíste nos caracteres! – nos distraíssemos dos malefícios.. Franca e lealmente, a questão põe-se assim: construíste, de facto, “muitas coisas” – mas com que real utilidade e sinceridade humanas, se há mais tuberculosos, se a dieta alimentar é mais pobre, se o nível de vida população é mais baixo, se a electricidade fornecida pelas barragens não é barata, se somos menos livres do que éramos, se temos nas províncias ultramarinas o trabalho obrigatório?
As obras públicas foram sempre, em todos os tempos, o álibi dos déspotas. Por outro lado, qualquer dos países da Europa, embora tão ou mais pequenos do que nós e assolados pela guerra, com muito menos espalhafato e na relatividade dos seus recursos, têm, sob regimes democráticos, e em muito menos tempo, realizado obras públicas muito mais importantes e socialmente mais úteis. As obras públicas são base e eixo da tua propaganda. Que te tenham prestado, não duvido; que, como dizes, prestem também à grei, não o provam nem a miséria do povo português nem a nossa classificação de país economicamente atrasado.
Igualmente seria ingénuo se, ao mesmo tempo que reconheço a limpeza em que tens as ruas e a ordem formal em que se encontra o país, esquecesse que, geralmente, também em quase todos os países do mundo, até nos subdesenvolvidos, os cemitérios se encontram impecavelmente limpos e não há desordens nas prisões. »
[ Mais desta carta noutro postal. ]
Apenas uns poucos extractos dela, que merecia transcrição integral. Os suficientes para o leitor experimentado bem avaliar pelo estilo da categoria do homem.
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Safei-me pelos meus próprios meios, sem colaboradores nem cúmplices, rompendo facilmente o cerco da tua PIDE, da tua tropa amedrontada, das tuas manadas de denunciantes – e ainda de outro cerco menos aparatoso de uma multidão de pobres castrados, medrosos, que me recomendavam “prudência e paciência” e até, por vezes, na sua apagada e vil tristeza, a rendição ou uma paz de compromisso. (…)
Como é provável que os idólatras que te restam – os que gulosamente roem os ossos fartos de que os alimentas, os que esperam em volta da gamela, e até alguns ingénuos ainda sinceramente convencidos da tua santidade (porque, enfim, há mais de vinte anos que sistematicamente os decapitas e porque as propagandas, nesta era do mundo, têm de facto poderes de tornar aceitáveis pelos ingénuos que só lêem os cartazes, as piores drogas para a calvície e para as mais hediondas políticas) – como é que provável, repito, que esses idólatras se indignem disciplinadamente contra as irreverências do tratamento que te dou e das cruas expressões de que me sirvo, embora sem “animum injuriandi”, respondo-lhes antes de ir mais longe, referindo brevemente, num mínimo de palavras, alguns factos que eles ignoram ou de que estão esquecidos.
Mandaste condenar-me sem provas há sete anos, por um Tribunal Militar constituído por generais do teu fabrico e ávidos de recompensas e pastas suplementares, e por um Juiz que, como se demonstrou em plena audiência, à data do julgamento devia estar na cadeia como delinquente comum – um juiz que se prestaria a todos os fretes para escapar de uma despromoção a Réu. Foi o tal Crispiniano de Lacerda, que até vocês, sempre tão benévolos para com os criminosos comuns da Oligarquia, tiveram mais tarde de empontar, tais as sujeiras que vos lançava na fachada.
Três anos de prisão maior; quinze anos de direitos políticos perdidos (pena a que, sem julgamento, já tinhas condenado quase todos os portugueses); confiscação dos meus únicos bens – a pensão de reforma; irradiação do Exército (única honra que me concederam). Ao cabo da pena, cumprida dia a dia, tornaste a mandar condenar-me (agora pelos sicários de um dos Plenários) também sem provas, em julgamento secreto e tão vergonhoso que, por dignidade própria, eu tive de declarar que me recusava a comparecer voluntariamente no tribunal, que só pela força lá me levariam e que, portanto, não colaboraria na farsa. E consegui realizar o meu intento porque, apesar da tua desenvoltura quando se trata de brutalidades, não ousaste confrontar-te com o escândalo de me fazer comparecer de colete de forças em maca carregada pelos burros da PIDE. Mais dezoito anos de prisão – digamos, prisão perpétua…. »
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1 Comments:
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