sábado, maio 23, 2009

UMA ALEGRIA NÃO DESTE MUNDO



« Uma só imperfeição existia nesse paraíso, não lhe pertencendo, mas acompanhando-o: a certeza do seu fim inevitável, inelutável, num momento desconhecido mas próximo. Esta apreensão subsistia, tal um ponto negro sobrenadando nesse mar cintilante de pura alegria. »

Dalila L. Pereira da Costa, “Três Meditações Sobre o Êxtase” (Primeira).

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Permita-me o leitor eu continue entre os dias  25 de Abril e 1º de Maio de 1974, que me praz. Não passaram de todo, veio lembrar-nos o Alexandre aqui ao Tonel. Decerto que não de todo, nem podíamos (ai de nós!) deixar que o tempo os passasse de todo – em face do tom horrendo e baço da paisagem social, política e moral que, desde os anos 80, se tem vindo a armar para nos consumir até ao tutano da alma: a nós, ávidos e engordados consumidores de hoje, e às gerações vindouras. Portanto, ainda “às vezes” (como disse o nosso escanção-mor) é Abril? Digo eu que será, se comemorar é lutar. - Pois quê, mais uma estafada “jornada de luta”?! – Sim, mas não mais uma nem uma qualquer. Ou então ficou definitivamente para trás e não teria aprendido nada quem ainda cresse que alguma coisa de decisivo passaria por berros nas ruas ou tanques a saírem dos quartéis. Não. Passa e passará, cada vez mais, pelo meio da casa de cada um e do coração de cada um.

Aliás, já o humaníssimo acto elementar de recordar não deixa de ser hoje uma forma de luta, quando vamos na fase de descarregamento da memória humana para a máquina, com a activa cumplicidade dos estrategos “pedagogos” que, nos sistemas de ensino público, têm vindo a assegurar o subdesenvolvimento e atrofia da memória humana - para que “as massas” vegetem sem passado (nem futuro). Memorando, pois, comovidamente, a pura alegria transparente no colectivo êxtase vivido nessa semana de há 35 anos, - “às vezes” me dei a pensar se, para além dos óbvios, não teria havido mais fundos motivos para a qualidade dum acontecimento tão raro, que até a não-portugueses no estrangeiro comoveu e atraiu. ( Raro ou talvez mesmo único na nossa História: após Aljubarrota, o senso de comunidade nacional em maturação ainda compete com o sentimento e as fidelidades feudais; em 1640, sobre a alegria da independência recuperada impendia a sombra da infalível revindicta espanhola.) Lembrou-me, e satisfez-me, um motivo nacional e um universal.

Do nacional já deixei um apontamento. Queria por hoje só dizer mais que a pura alegria foi, logo nessa semana, assombrada pelas declarações dum general herdeiro velho do Estado Velho, que no próprio dia 25 garantia pelo telefone a Marcello Caetano que não comandava golpes militares e que não era nenhum rebelde às autoridades constituídas; mas que lá iria ao Carmo “receber o poder” das mãos do chefe do governo para, como este muito temia, “o poder não cair na rua”. E foi, não sem licença dos “rebeldes” no posto de comando da Pontinha. E “investido do poder”, ei-lo que chega ao posto todo ancho e todo sorrisos abertos e abraços apertados, que nunca ninguém vira antes ao “velho” (como o tratavam os jovens capitães), a atribuir condecorações, a despachar para cargos, a tentar emendar o Programa do MFA… Pois o mesmo general António de Spínola, quando da autorização concedida pela Junta de Salvação Nacional para as manifestações do 1º de Maio, dizia isto – “ Depois é preciso pôr termo à agitação”… Agitação, a pura alegria crescente dessa semana, e que iria explodir no dia seguinte por todo o país!... Um “ponto negro sobrenadando”…

Era a voz da experiência velha. Depois do “dia do trabalhador” forçoso era voltar ao forçado trabalho. Ora, os portugueses não gostamos de trabalhar no nosso lindo jardim, mas de o gozarmos à beira do amor plantado, por tão queridas mães guardado e por tão lindas mulheres povoado: jardim à beira ou no meio do mar, ilha dos amores, como diz o Poeta!... Longe da vista dele, sim, no exílio estrangeiro, trabalhamos então muito e melhor que muitos!

Mas ouçamos agora a voz da inocência dos novos. Seja a do (na altura) jovem capitão Santos Coelho, mandatado pelo Movimento das Forças Armadas para no 25 de Abril de há 35 anos proceder à ocupação do Rádio Clube Português, a quem no 25 de Abril de há dias ouvi dizer isto: - “ Sabe, éramos muito ingénuos nesse tempo. Julgávamos que bastava abrir as portas, e tudo o que sonhávamos para o país chegaria…” O que chegou aos capitães do Movimento, e desde logo que se mudaram nos dias a seguir para uma Comissão Coordenadora, à Cova da Moura, foram os trabalhos e sarilhos com que o major de artilharia Otelo Saraiva de Carvalho, graduado em brigadeiro e posto à frente do Comando Operacional do Continente (Copcon), jamais na sua vida tinha pensado enfrentar: « Começaram a aparecer no Copcon os problemas mais diversos e os mais disparatados [sic], trazidos por gente que não tinha nada a ver com os militares, gente pobre, trabalhadores, camponeses, que não sabiam a quem se dirigir…. – Vamos lá a ver isso. Os patrões fugiram? Muito bem. Vocês têm matéria-prima?... – Ainda há alguma… – Eh pá, quem é o mais antigo na fábrica? Ficas chefe da fábrica. Continuem a trabalhar. Vamos depois tenta vender os produtos que fabricarem…. » Vamos tentar vender!... Era a voz da “inexperiência”, como conta e reconhece hoje o comandante operacional do 25 de Abril. Era, decerto um sonho lindo…

“Uma só imperfeição existia…” Foi por isso, caro leitor, que eu já disse que o êxtase colectivo, a grande festa daquela inolvidável semana de 25 de Abril a 1 de Maio, tinha um fim “inevitável” e “próximo”. Não é possível viver em festa todos os dias num mundo onde (como gostam de dizer os srs. economistas) “não há almoços grátis”. Ora, festa e trabalho não dançam bem o pas de deux, e quando há que olhar a conta e saber quem é que paga… Por isso, até 25 de Novembro de 75, a obstinada tentativa de prolongar a festa e encaixar a utopia nas duras “realidades” deste mundo logo foi cobrada com horrível preço: os quinhentos mil refugiados de África e a guerra civil entre os abandonados africanos, alastrada depois a Timor desertado. Mas tão inevitável como o seu perigo e a terminal frustração, é a reiterada tentativa; e tão recorrente e irresistível é a pretensão de abrirmos lugar neste mundo ao que, por definição – a Utopia - não tem lugar neste mundo, que eu lhe chamaria mais propriamente… tentação. Eis o motivo constante e universal. E afinal porquê? Parece-me importante antes do mais compreender bem que um qualquer estado de coisas colectivo tão “ideal” que mereça chamar-se “utópico” não poderia nunca “ter lugar” no espaço-tempo deste mundo.

Suponha o leitor que não só as mencionadas aporias económicas tinham sido resolvidas e superadas: a sociedade humana (toda a sociedade humana) tinha chegado a uma sociedade que qualquer indivíduo imparcial e racional não teria a mínima dúvida de classificar como sociedade humana ideal ( SI ). Ou suponha uma qualquer à sua escolha, desde o “5º Império” de António Vieira até aos socialismos populares “sem exploradores nem explorados” do pós-Abril. Agora repare nisto: tal SI necessariamente excluiria dela todos os infelizes humanos que, tendo vivido e morrido antes, não podiam ter beneficiado dela. Logo, ou os beneficiários actuais da SI teriam perdido a simpatia ou a memória dos infelizes que tiveram o azar de existir antes; ou uma saudosa pena assombraria a SI, tornando-a menos feliz do que “idealmente” deveria ser. Mas em qualquer dos casos haveria injustiça para a imensa maioria dos mortos que a desconheceram, e maior ainda se tivessem lutado por ela. [ A única escapatória ao dilema seria a suposição de que os mortos (todos) ressuscitariam ou reencarnariam na SI; mas esta hipótese, que põe problemas próprios relativamente à parte temporal do futuro, afastar-nos-ia deste mundo… ] Logo, por elementar questão de justiça, tal SI não poderia ser... uma SI.

Uma outra razão decisiva é que uma SI teria de eliminar o livre-arbítrio de quem, mesmo reconhecendo (e todos teriam de reconhecer) que se estava no bom caminho ou já se vivia numa SI – não quisesse tal. Ora, se tal livre-arbítrio é ineliminável do ser humano, tão inevitável seria a ditadura totalitária ( a prevista do “proletariado” ou qualquer outra) como a subversão e eliminação a prazo da ditadura. Estaríamos aqui confrontados com o problema de uma vontade que, mesmo racional, não tem que ser necessariamente uma vontade boa. Um problema que nem um Kant conseguiu resolver nos termos deste mundo.

Respondo agora ao que fiquei a dever ao leitor. Se uma SI não é possível neste mundo, porquê a recorrente e a (quase) irresistível tentação? É “quase” por causa do discernimento e decisão que servem o juízo regrado e senhor da vontade. É “recorrente” e “irresistível” porque o sonho comanda a vida (António Gedeão) e pelo sonho é que vamos (Sebastião da Gama), e é um sonho lindo que nos leva. – O leitor terá reparado que o poeta Ruy Cinatti não disse que não éramos do mundo, sim que não éramos deste mundo onde há outros poetas que sofrem do tom algendo e baço do tédio; e tanto que parece não querem este nem nenhum outro mundo: mas não levam o niilismo até à extinção deste desejo (e de o escrever, como Bernardo Soares) e, portanto, ainda assim subsiste o refúgio ou refugo de um “ideal”... O "desejo de Nada", como o nada desejar, vivem ainda à luz duma SI, como se esta luz fosse a de um sol indispensável à vida da alma humana.

- Para onde vamos, então?

- Não decerto para “ a política” e para aquela situação (nada utópica) daqueles que não têm mais ideal que saquear os contribuintes e esbanjar os dinheiros públicos ou encher os bolsos próprios. Vamos para onde a muito respeitável e veneranda senhora (de 91 anos) Dalila Pereira da Costa andou e nos contará para a semana.


[ Fica plantada aqui a Rosa Meditativa, de Salvador Dali. ]