17 DE MAIO DE 1959
Acontecimentos públicos de larga repercussão extensiva a toda uma sociedade global, nacional ou internacional, podem ter as mais comezinhas e longínquas origens no secreto do coração de um ou de poucos indivíduos, conhecidos ou desconhecidos entre si; e tais acontecimentos de retumbância colectiva, momentaneamente tão notados e impressionantes, podem afinal vir a ser a pouco e pouco esquecidos, a não ser nos efeitos longínquos que virão a ter no secreto do coração de um ou alguns indivíduos que os desenterrem da poeira dos arquivos. Se o caro leitor convém comigo no que acabo de dizer, talvez se não admire do realce que dou a acontecimentos como os seguintes.
Para o dia 11 de Março de 1959 estava aprazado um jogo de basquetebol entre a equipa da Academia Militar e a do Instituto Superior Técnico para o torneio inter-universidades de Lisboa. Acontece que nesse dia os jovens da Academia tinham um teste marcado de Tiro de Artilharia, e é o cadete Otelo Saraiva de Carvalho que fica de telefonar ao chefe do curso – o muito popular e prestigiado major Pastor Fernandes – a pedir para adiar o teste. E chega à fala com ele: - “ O teste fica adiado com certeza, e sine die. A Pide acaba de chegar e vai-me levar de férias para a Trafaria…” A polícia política antecipara-se e fizera abortar o golpe militar que ficará conhecido pela “Revolta da Sé”, por os conspiradores se terem encontrado em dependências anexas aos claustros da Sé de Lisboa, com conhecimento do padre João Perestrelo de Vasconcelos. Entre os conspiradores militares havia vários civis pertencentes à Acção Católica, que também foram presos. – “Foi um choque para mim!” – conta Otelo, e suficientemente forte para que o lembrasse 50 anos depois, com outras lembranças não menos fortes da sua infância moçambicana; lembranças de menino branco violentado pela violência que via cometida sobre os meninos pretos seus amigos e companheiros de jogos e brincadeiras. E eu lembrei-me das mesmas feridas provocadas no coração-menino de um Ernesto Melo Antunes, observando como eram espancados os nativos angolanos na parada do quartel em que seu pai era militar. A mesma lembrança escandalizada e indelével que um Salgueiro Maia guardou da sobranceria racista de muitos brancos em Moçambique, quando lá chegou na sua primeira comissão de serviço.
Muito me prazeria que tivéssemos neste tipo de casos exemplares uma das complexas e concorrentes causas da terminal mutação que simbolizamos na data de 25 de Abril de 1974. É típico das coisas humanas que nos anos 30 em que se levantava em triunfo o “Estado Novo”, estivesse a nascer a geração dos homens que o abateria. Tenho para mim que os anos 58-59 foram os decisivos para a viragem no caminho de Abril. O leitor mais velho lembrará os dois acontecimentos ainda hoje mais lembrados: a campanha do general Humberto Delgado para a presidência da República; a carta de Julho de 58 do bispo do Porto a Salazar. Este último foi o protagonista de outro acontecimento político relevante, quando, ao dar posse aos novos dirigentes da União Nacional, faz em Novembro o balanço político do ano: acusa a tentativa de rompimento da “frente nacional” de apoio ao regime e entreabre ameaçadoras perspectivas de revisão das relações Estado-Igreja. Tudo se agrava ou começa a esclarecer decisivamente em 1959. -
Janeiro: à guisa de prémio pela campanha feita, Delgado é compulsivamente aposentado da carreira militar; refugia-se na embaixada do Brasil e pede asilo político. Fevereiro: como já lembrei aqui, Henrique Galvão, fugido à Pide, acolhe-se na embaixada da Argentina e pede também asilo político. Março: nos primeiros dias, dois documentos subscritos por 43 católicos, entre os quais seis padres; um dos textos intitula-se “As relações ente a Igreja e o Estado e a Liberdade dos Católicos”, onde manifestam ter “sérias razões para julgar que o actual regime descura aquele mínimo respeito pela justiça e pelas liberdades fundamentais dos cidadãos”; no outro, as razões eram fundamentadas com a denúncia e descrição de casos concretos de arbitrariedades e tortura policiais; a 11, a já referida “revolta da Sé”. Maio: a 17, inauguração em Almada do monumento a Cristo-Rei. Julho: na Assembleia Nacional, em hora de revisão da Constituição de 1933, os deputados debatem com paixão acesa até ao insulto e quase agressão física a proposta de incluir uma invocação a Deus no Preâmbulo do texto constitucional; a proposta foi rejeitada. Outubro: no regresso duns dias de férias, D. António Ferreira Gomes é impedido pela polícia de reentrar em Portugal e no governo da sua diocese; e o governo do ex-seminarista e militante do Centro Católico não se teme de separar o Pastor cristão do seu rebanho e prossegue nas pressões diplomáticas para a Santa Sé o destituir do bispado portuense. Dezembro: os representantes portugueses na ONU votam contra a condenação do regime do apartheid racista da África do Sul.
Como se vê, nada mau para uma situação cujo dono tanto queria fosse a do “viver habitualmente”, com os cidadãos pacatos sem mais política que a do trabalho ordeiro e pacífico. O caro leitor terá reparado e admirado a referência ao acontecimento cujo aniversário importa a portugueses e a Portugal recordar hoje, porque tão importante é hoje como foi na tarde daquele domingo de Pentecostes de 17 de Maio de 1959. Mas até ao “realista” da política que era o biógrafo e panegirista de Salazar, Franco Nogueira, não escapou alguma coisa do que esteve em juízo naquele dia, no Estado de Aparências chamado “Estado Novo”, em que « da luta surda entre Salazar e a Hierarquia não se apercebeu a opinião pública, nem a compreenderam os círculos da alta política… » Aliás, dava-se a notável e significativa coincidência de se repetir a mesma “luta surda” que existira pelo 13 de Maio de 1946, quando em Fátima se viveu uma ocasião solene e de semelhante transcendência, a que o ditador fez questão de não comparecer.
A salvo no Brasil, aos pés da estátua do Cristo Redentor do Corcovado, alguém já do essencial se apercebera, compreendera e escrevera. Referindo-se aos acontecimentos dos meses anteriores, dizia com livre franqueza Henrique Galvão na sua Carta a Salazar:
«Perante estas inesperadas manifestações de resistência – que só não seriam inevitáveis se a Igreja fosse, na verdade, a pobre coisa a que tentaste reduzi-la em Portugal pela acção de alguns dos seus ministros e fiéis indignos – tu, se fosses o verdadeiro católico que toda a gente supunha, só tinhas de assumir uma atitude de moralidade e inteligência: reconheceres o direito (e o dever) que a Igreja tem de não se aliar a políticas temporais. Tanto mais que o movimento não era de oposição política, mas apenas de independência e de fidelidade a uma doutrina. A Igreja recusa-se a servir-te como político, mas, em circunstância alguma, se mostrou disposta a servir, também como política, a oposição.
Mas, de facto, tu não eras nem nunca foste um verdadeiro católico, um verdadeiro cristão. Eras apenas mais um fariseu, eras Tartufo incarnado - e mais nada. Convencido senhor de todos os poderes, podias lá permitir uma Igreja que não fosse dependência da União Nacional, um papado que não fosse o teu, uma organização religiosa em que não tivesses um altar – bispos que não colaborassem na propaganda eleitoral, padres que lamentassem a miséria do povo e falassem em nome do verdadeiro Cristo, uma juventude que não fosse de meninos castrados do teu coro!
Perdeste então a cabeça e fizeste o que durante trinta anos cautelosamente evitaste: mostraste-te publicamente nu em pelo, sem as vestes de Tartufo, ampliado pela rádio e pela televisão, irado, feroz, descomposto, na plena verdade dos teus sentimentos e do teu espírito. E toda a nação te viu na realidade do que já suspeitava: anti-cistão, anti-católico, discípulo fiel de Herodes e Pilatos (…). Pouco tempo depois, o próprio Cardeal Patriarca, que tanto havia suportado, decerto por imperativos sentimentais de homem de argila, tomava posição à frente do episcopado – e não teve que tomar senão posições religiosas, apolíticas, para te meter na ordem: “a Igreja não é tua nem da oposição. A Igreja é de Deus – e deixaria de ser de Deus se se entregasse a César.” »
Galvão refere-se à carta pastoral que o episcopado português publicara em Janeiro, e que alguns entenderam como de corroboração de certas palavras que o sr. Cardeal Cerejeira, na sua mensagem de Natal de dias antes, tinha lembrado aos portugueses e ao seu perpétuo primeiro-ministro. E quais tinham sido? Estas, entre outras: - « É legítimo dizer que é a ordem espiritual que julga a temporal – e não vice-versa. »
Salazar não era o senhor da situação. Em Almada, a partir de Maio de 1959 ficava patente aos olhos de quem quisesse ver que havia outro Senhor.
Para o dia 11 de Março de 1959 estava aprazado um jogo de basquetebol entre a equipa da Academia Militar e a do Instituto Superior Técnico para o torneio inter-universidades de Lisboa. Acontece que nesse dia os jovens da Academia tinham um teste marcado de Tiro de Artilharia, e é o cadete Otelo Saraiva de Carvalho que fica de telefonar ao chefe do curso – o muito popular e prestigiado major Pastor Fernandes – a pedir para adiar o teste. E chega à fala com ele: - “ O teste fica adiado com certeza, e sine die. A Pide acaba de chegar e vai-me levar de férias para a Trafaria…” A polícia política antecipara-se e fizera abortar o golpe militar que ficará conhecido pela “Revolta da Sé”, por os conspiradores se terem encontrado em dependências anexas aos claustros da Sé de Lisboa, com conhecimento do padre João Perestrelo de Vasconcelos. Entre os conspiradores militares havia vários civis pertencentes à Acção Católica, que também foram presos. – “Foi um choque para mim!” – conta Otelo, e suficientemente forte para que o lembrasse 50 anos depois, com outras lembranças não menos fortes da sua infância moçambicana; lembranças de menino branco violentado pela violência que via cometida sobre os meninos pretos seus amigos e companheiros de jogos e brincadeiras. E eu lembrei-me das mesmas feridas provocadas no coração-menino de um Ernesto Melo Antunes, observando como eram espancados os nativos angolanos na parada do quartel em que seu pai era militar. A mesma lembrança escandalizada e indelével que um Salgueiro Maia guardou da sobranceria racista de muitos brancos em Moçambique, quando lá chegou na sua primeira comissão de serviço.
Muito me prazeria que tivéssemos neste tipo de casos exemplares uma das complexas e concorrentes causas da terminal mutação que simbolizamos na data de 25 de Abril de 1974. É típico das coisas humanas que nos anos 30 em que se levantava em triunfo o “Estado Novo”, estivesse a nascer a geração dos homens que o abateria. Tenho para mim que os anos 58-59 foram os decisivos para a viragem no caminho de Abril. O leitor mais velho lembrará os dois acontecimentos ainda hoje mais lembrados: a campanha do general Humberto Delgado para a presidência da República; a carta de Julho de 58 do bispo do Porto a Salazar. Este último foi o protagonista de outro acontecimento político relevante, quando, ao dar posse aos novos dirigentes da União Nacional, faz em Novembro o balanço político do ano: acusa a tentativa de rompimento da “frente nacional” de apoio ao regime e entreabre ameaçadoras perspectivas de revisão das relações Estado-Igreja. Tudo se agrava ou começa a esclarecer decisivamente em 1959. -
Janeiro: à guisa de prémio pela campanha feita, Delgado é compulsivamente aposentado da carreira militar; refugia-se na embaixada do Brasil e pede asilo político. Fevereiro: como já lembrei aqui, Henrique Galvão, fugido à Pide, acolhe-se na embaixada da Argentina e pede também asilo político. Março: nos primeiros dias, dois documentos subscritos por 43 católicos, entre os quais seis padres; um dos textos intitula-se “As relações ente a Igreja e o Estado e a Liberdade dos Católicos”, onde manifestam ter “sérias razões para julgar que o actual regime descura aquele mínimo respeito pela justiça e pelas liberdades fundamentais dos cidadãos”; no outro, as razões eram fundamentadas com a denúncia e descrição de casos concretos de arbitrariedades e tortura policiais; a 11, a já referida “revolta da Sé”. Maio: a 17, inauguração em Almada do monumento a Cristo-Rei. Julho: na Assembleia Nacional, em hora de revisão da Constituição de 1933, os deputados debatem com paixão acesa até ao insulto e quase agressão física a proposta de incluir uma invocação a Deus no Preâmbulo do texto constitucional; a proposta foi rejeitada. Outubro: no regresso duns dias de férias, D. António Ferreira Gomes é impedido pela polícia de reentrar em Portugal e no governo da sua diocese; e o governo do ex-seminarista e militante do Centro Católico não se teme de separar o Pastor cristão do seu rebanho e prossegue nas pressões diplomáticas para a Santa Sé o destituir do bispado portuense. Dezembro: os representantes portugueses na ONU votam contra a condenação do regime do apartheid racista da África do Sul.
Como se vê, nada mau para uma situação cujo dono tanto queria fosse a do “viver habitualmente”, com os cidadãos pacatos sem mais política que a do trabalho ordeiro e pacífico. O caro leitor terá reparado e admirado a referência ao acontecimento cujo aniversário importa a portugueses e a Portugal recordar hoje, porque tão importante é hoje como foi na tarde daquele domingo de Pentecostes de 17 de Maio de 1959. Mas até ao “realista” da política que era o biógrafo e panegirista de Salazar, Franco Nogueira, não escapou alguma coisa do que esteve em juízo naquele dia, no Estado de Aparências chamado “Estado Novo”, em que « da luta surda entre Salazar e a Hierarquia não se apercebeu a opinião pública, nem a compreenderam os círculos da alta política… » Aliás, dava-se a notável e significativa coincidência de se repetir a mesma “luta surda” que existira pelo 13 de Maio de 1946, quando em Fátima se viveu uma ocasião solene e de semelhante transcendência, a que o ditador fez questão de não comparecer.
A salvo no Brasil, aos pés da estátua do Cristo Redentor do Corcovado, alguém já do essencial se apercebera, compreendera e escrevera. Referindo-se aos acontecimentos dos meses anteriores, dizia com livre franqueza Henrique Galvão na sua Carta a Salazar:
«Perante estas inesperadas manifestações de resistência – que só não seriam inevitáveis se a Igreja fosse, na verdade, a pobre coisa a que tentaste reduzi-la em Portugal pela acção de alguns dos seus ministros e fiéis indignos – tu, se fosses o verdadeiro católico que toda a gente supunha, só tinhas de assumir uma atitude de moralidade e inteligência: reconheceres o direito (e o dever) que a Igreja tem de não se aliar a políticas temporais. Tanto mais que o movimento não era de oposição política, mas apenas de independência e de fidelidade a uma doutrina. A Igreja recusa-se a servir-te como político, mas, em circunstância alguma, se mostrou disposta a servir, também como política, a oposição.
Mas, de facto, tu não eras nem nunca foste um verdadeiro católico, um verdadeiro cristão. Eras apenas mais um fariseu, eras Tartufo incarnado - e mais nada. Convencido senhor de todos os poderes, podias lá permitir uma Igreja que não fosse dependência da União Nacional, um papado que não fosse o teu, uma organização religiosa em que não tivesses um altar – bispos que não colaborassem na propaganda eleitoral, padres que lamentassem a miséria do povo e falassem em nome do verdadeiro Cristo, uma juventude que não fosse de meninos castrados do teu coro!
Perdeste então a cabeça e fizeste o que durante trinta anos cautelosamente evitaste: mostraste-te publicamente nu em pelo, sem as vestes de Tartufo, ampliado pela rádio e pela televisão, irado, feroz, descomposto, na plena verdade dos teus sentimentos e do teu espírito. E toda a nação te viu na realidade do que já suspeitava: anti-cistão, anti-católico, discípulo fiel de Herodes e Pilatos (…). Pouco tempo depois, o próprio Cardeal Patriarca, que tanto havia suportado, decerto por imperativos sentimentais de homem de argila, tomava posição à frente do episcopado – e não teve que tomar senão posições religiosas, apolíticas, para te meter na ordem: “a Igreja não é tua nem da oposição. A Igreja é de Deus – e deixaria de ser de Deus se se entregasse a César.” »
Galvão refere-se à carta pastoral que o episcopado português publicara em Janeiro, e que alguns entenderam como de corroboração de certas palavras que o sr. Cardeal Cerejeira, na sua mensagem de Natal de dias antes, tinha lembrado aos portugueses e ao seu perpétuo primeiro-ministro. E quais tinham sido? Estas, entre outras: - « É legítimo dizer que é a ordem espiritual que julga a temporal – e não vice-versa. »
Salazar não era o senhor da situação. Em Almada, a partir de Maio de 1959 ficava patente aos olhos de quem quisesse ver que havia outro Senhor.
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