UMA EXPERIÊNCIA MORTAL : DUAS SAÍDAS ( VI )
Não esqueceremos que a história da Caverna, para o seu narrador Platão, explicitamente alegoriza uma certa forma de Educação, uma paideia necessária aos sábios guardiães da justiça num Estado bem governado. E isto significava para o filósofo ateniense: governado à luz do soberano Bem, não assombrado e soçobrado por valores fictícios. Não é esse o nosso assunto (a Educação), embora não possa deixar de ser o nosso assunto (o soberano Bem).
Ficámos no anterior onde estamos ainda: na sombra da Caverna… e à sombra dele. Os cavernícolas estavam lá “desde a infância”, e sabe o leitor que, para o narrador do mito de Er, na mesma República, e dos mitos do Fedro ou do Górgias, - a existência humana precede e sobrevive à Caverna. Aliás, o espaço interior como o exterior dela são espaços deste mundo, transitáveis e comunicantes entre si.
Na nossa versão, os cavernícolas eram lá nados e criados, e, pelo menos alguns, teriam inventado os meios tecnológicos de lá perpetuarem a existência. Durante algum tempo tivéramos aparente uma legenda sobre a não coincidência entre “realidade” e “ficção”; durante muito tempo acreditáramos que os espectadores na plateia éramos “reais”, as imagens projectadas diante nós “ficção”. Mas, com o evoluir das tecnologias, criaram-se imagens sobreponíveis, ponto por ponto, píxel por píxel, átomo por átomo às imagens que tínhamos da casa e de nós próprios; envolveram-nos na holográfica Caverna e já não discerníamos nenhuma diferença da imagem original; em úteros artificiais ou naturais de seleccionadas mulheres-parideiras, criavam-nos ab ovo uma cópia exacta de cada um de nós, capaz de se replicar em cena perpetuamente… Mas a cópia, de tão exacta e completa, salvou em alguns de nós uma ideia extraordinária, inconcebível: a ideia de uma alteridade transcendente, autónoma, incondicionável e… real. Ideia inconcebível e “sem sentido”, porque não se vê ao termo qual referente pode ser pensado; ou como podia ter chegado ou levar além da casa fechada e sem buracos, onde enfim podíamos permanecer confortavelmente e para sempre. Mas eis senão quando apareceu na cena da consciência dos espectadores um intruso inesperado…
Sem melhor alternativa que um mascarado de “político” a fazer gatimanhos taurinos para os seus pares em Cortes, estava eu a rever o que a maioria consumidora votara rever pela undécima vez: as imagens da apoteótica chegada do “divino” C. R. aos “galácticos”, no grande rodeo do Bernabéu. A incomodidade cresceu-me até ao asco e vómito irreprimível, se não tivesse desviado os olhos e ouvido dentro em mim: “Não isto! Não mais isto! Nem isto nem mais nada!” Nada?... Se tínhamos tudo, por todo o tempo que quiséssemos, que nada, a que vem o nada?... O que poderia ser “nada disto”, “nada mais”? Seria aquela ideia de alteridade este “nada disto”, o “mais” sobreposto a “nada”?... Na corrente da minha fila, preso ao lugar mais próximo da coxia central, reparei no espectador Bernardo Soares, que levantava os olhos ao tecto, e ouvi dentro em mim estas palavras: “Tédio! Tédio!...” E senti, sem representação possível, um certo tom algendo e baço. E, como ele, ergui os olhos para cima, como gostava de adormecer, olhando o espectáculo das noites estreladas projectado no tecto da casa…
Então deu-se isto. – Começou com um sonido surdo, rapidamente crescido até ser de todos audível, semelhando o que nos parecia ser um “vento”. Parecia vir de todas as direcções, do próprio chão. Os assentos, as paredes, todo o teatro vibrava e como tremia. E de repente o céu pintado do tecto da casa foi levado como folha de papel arrancado ou adesivo mal colado à pele. Vimos – e todos vimos – como que uma superfície luminosa, de um azul mais lúcido e limpo que o azul que tínhamos às vezes em Maio no nosso céu português. Parecia ao mesmo tempo dura e finíssima, e, sem uma centelha ou prega visíveis, comunicava um como ondear irradiante, como imenso e cerúleo mar, fremente dalgum sol que tivesse dentro…
A aparição durou menos que a descrição dela nestas toscas palavras. Foi reposta a tela habitual do “céu”. A alguns poucos espectadores mais eruditos saltou do hipocampo cerebral ao campo da consciência uma velha palavra, há muito esquecida, cuja radical etimologia indo-europeia significava “ a luminosidade do céu diurno”… - a palavra “Deus”…
Os tecnólogos de serviço falaram dum pequeno e momentâneo “problema” que os equipamentos de manutenção e monitorização logo tinham resolvido. Não falaram dos problemas que sobravam para eles: como apagar a lembrança dessa aparição, duma qualidade tão diferente, que todos tínhamos visto? Contavam com o tempo, a habituação ao cenário habitual, novas e mais impressivas formas de espectáculo; e também, é claro, com cirúrgicas, “não invasivas” intervenções radiológicas na memória dos espectadores. Mas o segundo problema era intratável: como prever e prevenir o imprevisível? E eles próprios, com o tempo, esqueceram o que não sabiam nem podiam. De um terceiro problema não se apereceberam logo os tecnólogos da diversão compulsiva e os seus encantados aclamadores. Ficou por um tempo e para alguns de nós, um problema só nosso: o clandestino intruso tédio, a aparição interior duma voz crescente em nós, a dizer-nos: - “Nada senão isto?”... “Nada mais que isto?”… E, com o tempo, uns de nós só achávamos momentâneo consolo erguendo a cabeça, olhando para cima… Vendo a tela do tecto da casa, toda nublada duma névoa alvadia, baça… Ou a negridão profunda dum céu imperturbado por nenhuma estrela.
Abriu-se pois uma saída… que é uma entrada! Sem a luz da Verdade e verdadeira Luz que entrou não se via no nosso teatro de sombras nenhuma saída. Foi uma intrusão chocante, imprevisível, de todo incontrolável e de tal maneira arrebatadora que quem o viveu precisará de muito tempo, muita habituação e muita diversão para o esquecer… Se é que pode. Ou procurará reabrir, reencontrar de qualquer maneira possível, por todo o tempo. O tempo da história humana… (O tempo de recuperar a fala e começar a contar a história…)
Enquanto saída de si e do habitado e habituado mundo da Caverna; enquanto experiência fulgurante de uma Alteridade soberanamente Real e irredutível ao mundo da percepção habitual – assim, pois, experiência do “sagrado” discernível e discernida da experiência “profana”; enquanto vivida (em algum instante ou instância) por todos os cavernícolas que (no tempo) a vão reviver na vida religiosa observável em todas as sociedades humanas, - a experiência do êxtase pode ter e tem afinal uma explicação a mais simples e de plena razão suficiente: - é causalmente necessitada pela presença manifestada de um Outro.
Como bem reconhece o sociólogo Henri Hatzfeld, com quem iniciámos esta série: «Uma maneira muito simples de explicar a religião é considerá-la, antes de tudo, como uma obra divina. Havendo uma intervenção de Deus na vida dos homens, e uma resposta destes, a religião seria o espaço da sua relação. » Descontando a já aqui denunciada confusão entre a experiência do sagrado, que é pessoal (independentemente do número de pessoas envolvidas), e a vida religiosa (no sentido de socialmente institucionalizada, intramundana), - temos aqui tudo em poucas e precisas palavras.
O trecho citado vem também ao propósito de esclarecermos o equívoco conceito de transcendência, que o sociólogo usava num sentido sobreveniente como o mais comum sentido hoje: a transcendência como superação, ultrapassagem de uma condição anterior, mas em linha (evolutiva) com essa condição (exemplo: a espécie do sapiens superando a do erectus na linha evolutiva do género homo). Mas, no sentido em que a tenho usado, com referência à experiência do êxtase enquanto experiência do sagrado, “o outro” não significa nenhuma diferença específica comparável entre duas quaisquer entidades com género comum, antes uma diferença radical entre duas entidades sem nenhum género comum: uma diferença ontológica irredutível entre o ser uno e a multiplicidade aparente dos existentes (nos termos da escola eleática grega); entre o criador, e o mundo criado e todas as criaturas (nos termos da tradição hebraica). Portanto: não apenas uma momentânea percepção alternativa deste mundo, por mais alargada e prazerosa que possa aparecer à experiência “enteogénica”. E uma diferença ontológica que é, no mesmo passo, uma hierarquização ontológica: o ser – o que é a verdade/realidade, como algo de mais valioso, de supremamente bom; o “sagrado” como algo de melhor e de mais desejável para o homem do que o “profano”.
Mas, é claro, quando nos habituamos à Caverna, quando começamos a sentir-nos confortáveis nela, a achá-la “natural”, então esse platónico “supremo Bem”… E que admira se, com o tempo, venha a esbater-se a ideia duma diferença irredutível entre “bem” e “mal”?... É o que os cavernícolas vamos vendo nos nossos dias… e achando “natural”. Também é claro que aquela “maneira muito simples de explicar”, que o sociólogo Hatzfeld reconhece nas primeiras linhas da “Apresentação” do seu livro, e logo esquece para rebuscar uma complicada “teoria” das “raízes da religião” mais ao gosto do que hoje se entende por “ciência”, - nem o convence a ele nem aos que parece já não têm ideia nenhuma doutra luz senão a metafórica solar a que são sensíveis estes olhos que a terra da Caverna há-de comer. Há-de comer? – Aqui está! Se, entretanto, aquela apontadora saída já não lhes serve (nem servida com um chazinho de Santo Daime…), talvez ainda se lembrem desta - a inescapável aos que um dia entraram na Caverna deste mundo pela porta do parto (aliás uma ocasião não rara da experiência do êxtase para algumas parturientes). Não, não lembram: querem é esquecer, ou iludi-la reduzida a pura fantasia banalizada em filmes e vídeojogos, torná-la mais uma consumível variedade do Espectáculo. Querem iludir com tão pueris artifícios o que há de mais certo neste mundo desde que aqui nascemos (os que chegam a nascer!)… Quando ainda há poucos séculos parecia adquirida e radicada a prudente sabedoria de encarar este curto espaço de tempo como balanço e preparação para lançar o grande salto… - Que formidável mutação cultural! E, como outros, não ponho a mínima dúvida na progressão a par destes dois fenómenos sociais: o esvaimento da experiência religiosa e a mudança de atitude dos que se crêem “vivos” perante o que crêem como “morte” (e os mortos). (Refiro-me apenas à nossa cultura europeia, iluminada pela “ciência”.)
Mas os tecnólogos de serviço no Teatro, que estão activamente a trabalhar para bloquear esta saída com mais diversões e expectativas de perpétua longevidade, têm o outro tal problema: é preciso detectar e eliminar o intruso tédio, não dar lugar a incomodados espectadores que incomodem – desassosseguem… - outros espectadores. No interesse do público, que é… “interesse público”.
Isto, caro leitor, dava-nos deixa para averiguarmos se estes tecnólogos podem ser finalmente os mais bem sucedidos avatares dos sábios guardiães da Cidade platónica. Mas esse assunto – a política – não é agora o nosso assunto.
Ficámos no anterior onde estamos ainda: na sombra da Caverna… e à sombra dele. Os cavernícolas estavam lá “desde a infância”, e sabe o leitor que, para o narrador do mito de Er, na mesma República, e dos mitos do Fedro ou do Górgias, - a existência humana precede e sobrevive à Caverna. Aliás, o espaço interior como o exterior dela são espaços deste mundo, transitáveis e comunicantes entre si.
Na nossa versão, os cavernícolas eram lá nados e criados, e, pelo menos alguns, teriam inventado os meios tecnológicos de lá perpetuarem a existência. Durante algum tempo tivéramos aparente uma legenda sobre a não coincidência entre “realidade” e “ficção”; durante muito tempo acreditáramos que os espectadores na plateia éramos “reais”, as imagens projectadas diante nós “ficção”. Mas, com o evoluir das tecnologias, criaram-se imagens sobreponíveis, ponto por ponto, píxel por píxel, átomo por átomo às imagens que tínhamos da casa e de nós próprios; envolveram-nos na holográfica Caverna e já não discerníamos nenhuma diferença da imagem original; em úteros artificiais ou naturais de seleccionadas mulheres-parideiras, criavam-nos ab ovo uma cópia exacta de cada um de nós, capaz de se replicar em cena perpetuamente… Mas a cópia, de tão exacta e completa, salvou em alguns de nós uma ideia extraordinária, inconcebível: a ideia de uma alteridade transcendente, autónoma, incondicionável e… real. Ideia inconcebível e “sem sentido”, porque não se vê ao termo qual referente pode ser pensado; ou como podia ter chegado ou levar além da casa fechada e sem buracos, onde enfim podíamos permanecer confortavelmente e para sempre. Mas eis senão quando apareceu na cena da consciência dos espectadores um intruso inesperado…
Sem melhor alternativa que um mascarado de “político” a fazer gatimanhos taurinos para os seus pares em Cortes, estava eu a rever o que a maioria consumidora votara rever pela undécima vez: as imagens da apoteótica chegada do “divino” C. R. aos “galácticos”, no grande rodeo do Bernabéu. A incomodidade cresceu-me até ao asco e vómito irreprimível, se não tivesse desviado os olhos e ouvido dentro em mim: “Não isto! Não mais isto! Nem isto nem mais nada!” Nada?... Se tínhamos tudo, por todo o tempo que quiséssemos, que nada, a que vem o nada?... O que poderia ser “nada disto”, “nada mais”? Seria aquela ideia de alteridade este “nada disto”, o “mais” sobreposto a “nada”?... Na corrente da minha fila, preso ao lugar mais próximo da coxia central, reparei no espectador Bernardo Soares, que levantava os olhos ao tecto, e ouvi dentro em mim estas palavras: “Tédio! Tédio!...” E senti, sem representação possível, um certo tom algendo e baço. E, como ele, ergui os olhos para cima, como gostava de adormecer, olhando o espectáculo das noites estreladas projectado no tecto da casa…
Então deu-se isto. – Começou com um sonido surdo, rapidamente crescido até ser de todos audível, semelhando o que nos parecia ser um “vento”. Parecia vir de todas as direcções, do próprio chão. Os assentos, as paredes, todo o teatro vibrava e como tremia. E de repente o céu pintado do tecto da casa foi levado como folha de papel arrancado ou adesivo mal colado à pele. Vimos – e todos vimos – como que uma superfície luminosa, de um azul mais lúcido e limpo que o azul que tínhamos às vezes em Maio no nosso céu português. Parecia ao mesmo tempo dura e finíssima, e, sem uma centelha ou prega visíveis, comunicava um como ondear irradiante, como imenso e cerúleo mar, fremente dalgum sol que tivesse dentro…
A aparição durou menos que a descrição dela nestas toscas palavras. Foi reposta a tela habitual do “céu”. A alguns poucos espectadores mais eruditos saltou do hipocampo cerebral ao campo da consciência uma velha palavra, há muito esquecida, cuja radical etimologia indo-europeia significava “ a luminosidade do céu diurno”… - a palavra “Deus”…
Os tecnólogos de serviço falaram dum pequeno e momentâneo “problema” que os equipamentos de manutenção e monitorização logo tinham resolvido. Não falaram dos problemas que sobravam para eles: como apagar a lembrança dessa aparição, duma qualidade tão diferente, que todos tínhamos visto? Contavam com o tempo, a habituação ao cenário habitual, novas e mais impressivas formas de espectáculo; e também, é claro, com cirúrgicas, “não invasivas” intervenções radiológicas na memória dos espectadores. Mas o segundo problema era intratável: como prever e prevenir o imprevisível? E eles próprios, com o tempo, esqueceram o que não sabiam nem podiam. De um terceiro problema não se apereceberam logo os tecnólogos da diversão compulsiva e os seus encantados aclamadores. Ficou por um tempo e para alguns de nós, um problema só nosso: o clandestino intruso tédio, a aparição interior duma voz crescente em nós, a dizer-nos: - “Nada senão isto?”... “Nada mais que isto?”… E, com o tempo, uns de nós só achávamos momentâneo consolo erguendo a cabeça, olhando para cima… Vendo a tela do tecto da casa, toda nublada duma névoa alvadia, baça… Ou a negridão profunda dum céu imperturbado por nenhuma estrela.
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Abriu-se pois uma saída… que é uma entrada! Sem a luz da Verdade e verdadeira Luz que entrou não se via no nosso teatro de sombras nenhuma saída. Foi uma intrusão chocante, imprevisível, de todo incontrolável e de tal maneira arrebatadora que quem o viveu precisará de muito tempo, muita habituação e muita diversão para o esquecer… Se é que pode. Ou procurará reabrir, reencontrar de qualquer maneira possível, por todo o tempo. O tempo da história humana… (O tempo de recuperar a fala e começar a contar a história…)
Enquanto saída de si e do habitado e habituado mundo da Caverna; enquanto experiência fulgurante de uma Alteridade soberanamente Real e irredutível ao mundo da percepção habitual – assim, pois, experiência do “sagrado” discernível e discernida da experiência “profana”; enquanto vivida (em algum instante ou instância) por todos os cavernícolas que (no tempo) a vão reviver na vida religiosa observável em todas as sociedades humanas, - a experiência do êxtase pode ter e tem afinal uma explicação a mais simples e de plena razão suficiente: - é causalmente necessitada pela presença manifestada de um Outro.
Como bem reconhece o sociólogo Henri Hatzfeld, com quem iniciámos esta série: «Uma maneira muito simples de explicar a religião é considerá-la, antes de tudo, como uma obra divina. Havendo uma intervenção de Deus na vida dos homens, e uma resposta destes, a religião seria o espaço da sua relação. » Descontando a já aqui denunciada confusão entre a experiência do sagrado, que é pessoal (independentemente do número de pessoas envolvidas), e a vida religiosa (no sentido de socialmente institucionalizada, intramundana), - temos aqui tudo em poucas e precisas palavras.
O trecho citado vem também ao propósito de esclarecermos o equívoco conceito de transcendência, que o sociólogo usava num sentido sobreveniente como o mais comum sentido hoje: a transcendência como superação, ultrapassagem de uma condição anterior, mas em linha (evolutiva) com essa condição (exemplo: a espécie do sapiens superando a do erectus na linha evolutiva do género homo). Mas, no sentido em que a tenho usado, com referência à experiência do êxtase enquanto experiência do sagrado, “o outro” não significa nenhuma diferença específica comparável entre duas quaisquer entidades com género comum, antes uma diferença radical entre duas entidades sem nenhum género comum: uma diferença ontológica irredutível entre o ser uno e a multiplicidade aparente dos existentes (nos termos da escola eleática grega); entre o criador, e o mundo criado e todas as criaturas (nos termos da tradição hebraica). Portanto: não apenas uma momentânea percepção alternativa deste mundo, por mais alargada e prazerosa que possa aparecer à experiência “enteogénica”. E uma diferença ontológica que é, no mesmo passo, uma hierarquização ontológica: o ser – o que é a verdade/realidade, como algo de mais valioso, de supremamente bom; o “sagrado” como algo de melhor e de mais desejável para o homem do que o “profano”.
Mas, é claro, quando nos habituamos à Caverna, quando começamos a sentir-nos confortáveis nela, a achá-la “natural”, então esse platónico “supremo Bem”… E que admira se, com o tempo, venha a esbater-se a ideia duma diferença irredutível entre “bem” e “mal”?... É o que os cavernícolas vamos vendo nos nossos dias… e achando “natural”. Também é claro que aquela “maneira muito simples de explicar”, que o sociólogo Hatzfeld reconhece nas primeiras linhas da “Apresentação” do seu livro, e logo esquece para rebuscar uma complicada “teoria” das “raízes da religião” mais ao gosto do que hoje se entende por “ciência”, - nem o convence a ele nem aos que parece já não têm ideia nenhuma doutra luz senão a metafórica solar a que são sensíveis estes olhos que a terra da Caverna há-de comer. Há-de comer? – Aqui está! Se, entretanto, aquela apontadora saída já não lhes serve (nem servida com um chazinho de Santo Daime…), talvez ainda se lembrem desta - a inescapável aos que um dia entraram na Caverna deste mundo pela porta do parto (aliás uma ocasião não rara da experiência do êxtase para algumas parturientes). Não, não lembram: querem é esquecer, ou iludi-la reduzida a pura fantasia banalizada em filmes e vídeojogos, torná-la mais uma consumível variedade do Espectáculo. Querem iludir com tão pueris artifícios o que há de mais certo neste mundo desde que aqui nascemos (os que chegam a nascer!)… Quando ainda há poucos séculos parecia adquirida e radicada a prudente sabedoria de encarar este curto espaço de tempo como balanço e preparação para lançar o grande salto… - Que formidável mutação cultural! E, como outros, não ponho a mínima dúvida na progressão a par destes dois fenómenos sociais: o esvaimento da experiência religiosa e a mudança de atitude dos que se crêem “vivos” perante o que crêem como “morte” (e os mortos). (Refiro-me apenas à nossa cultura europeia, iluminada pela “ciência”.)
Mas os tecnólogos de serviço no Teatro, que estão activamente a trabalhar para bloquear esta saída com mais diversões e expectativas de perpétua longevidade, têm o outro tal problema: é preciso detectar e eliminar o intruso tédio, não dar lugar a incomodados espectadores que incomodem – desassosseguem… - outros espectadores. No interesse do público, que é… “interesse público”.
Isto, caro leitor, dava-nos deixa para averiguarmos se estes tecnólogos podem ser finalmente os mais bem sucedidos avatares dos sábios guardiães da Cidade platónica. Mas esse assunto – a política – não é agora o nosso assunto.
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