quarta-feira, maio 27, 2009



Filósofa, vidente e poeta é esta admirável dona portuguesa, hoje a mais eminente representante viva da tradição cultural a que alguns têm chamado Escola Portuense, e que modernamente derivaria do filósofo e matemático Pedro de Amorim Viana (1822-1901). Modernamente, disse. Mas para mim creio ser muito mais antiga tal “escola” que sempre tem falado pela voz do Porto, e que eu designaria antes por galaico-duriense. E devemos precisamente a Dalila Pereira da Costa, a penetrante inquiridora de As Margens Sacralizadas do Douro, o lançar de luz sobre as suas remotas origens, o repercutir e clarificar na sua própria aquela voz. Que é a nossa.

O trecho citado foi extraído da primeira das “Três Meditações Sobre o Êxtase”, publicadas pela primeira vez em tradução francesa na revista Esprit, em 1970, e incluídas depois no livro A Força do Mundo, saído no Porto dois anos depois. As meditações são um testemunho e ensaio de mediação racional da fenomenologia das experiências vividas pela autora (“essas duas vezes”), ao que parece em finais da década de cinquenta, e que deixaram um carácter indelével na sua obra, sobretudo reflectido neste e no livro seguinte – Encontro na Noite (1973).

Desde 1902, com o clássico de William James sobre As Variedades da Experiência Religiosa, sabemos que este tipo de experiência não é raro. O facto foi corroborado, em 1961, no inquérito empírico e na análise cultural levados a cabo no livro Ecstasy, da inglesa Marghanita Laski; uma obra que permanece ainda hoje como modelo exemplar e insuperado de um estudo científico desta modalidade da experiência humana, e que nos dá no seu subtítulo – A Study of Some Secular and Religious Experiences – motivo ao primeiro reparo que gostaria de fazer. –

Nos excertos transcritos acima (e nas citações de Rimbaud e Dante) não há nada de especificamente “religioso”, no sentido comum deste termo. No inquérito a que procedeu a srª Laski junto de pessoas comuns que alegaram ter vivido e descrevem a experiência do “êxtase”, 25 dos 63 respondentes identificavam-se como “ateus” ou “agnósticos”. Mas, a propósito dela, Dalila Pereira da Costa qualifica-a por vezes como uma experiência “mística”, nome que podemos aceitar em ambos os sentidos (lato e restrito) em que Jerome Gellman a define, no seu clarificador estudo sobre o “Misticismo” para a Enciclopédia Stanford de Filosofia (onde aliás distingue a “mystical experience” da “religious experience”). Pode o leitor dar-lhe o nome que preferir, ou nenhum; o que importa é repararmos nalguns dos traços descritos pela nossa portuguesa, e que são típicos. Destacarei quatro, para me concentrar nas implicações de dois.

1. É uma experiência súbita, inesperada, a qual o sujeito não tem consciência de ter preparado ou merecido. Pelo contrário, “apresenta-se espontaneamente, fora da nossa vontade ou iniciativa”; “surge de repente”.

2. Parece extrinsecamente motivada, como uma experiência da alteridade, de um “outro mundo”, que “rebenta diante de nós” e se faz “próximo”; um mundo onde vive “a verdadeira vida”; uma presença e uma realidade “diferentes do “nosso mundo”; sabe e sabe-se como se fora o “paraíso”.

3. É uma experiência epistemicamente relevante: origem de um saber transracional, de visão intuitiva, não discorrido em conceitos ou argumentos; que se exprime por uma certa forma de filosofia, e pela poesia.

4. É inevitavelmente transiente e efémera, propriedades em que já insisti no postal da semana passada, mas que nunca é de mais repetir em atenção às consequências, boas ou más, mas sempre poderosas que têm na nossa vida individual e colectiva, neste mundo.

A conjunção de 1 e 2 é de enorme importância para aferir da diferença entre este tipo de experiência e as tentativas com que os humanos nos procuramos, por nós próprios, causar um efeito que, por si, parece ser de qualidade diferente e alheia a toda a vontade e merecimento humanos. A diferença foi reconhecida e sublinhada pela srª Laski, comparando cuidadosa e pormenorizadamente os relatos da experiência extática com alguns derivados da ingestão de drogas como a mescalina ou o LSD. Especialmente significativos são os testemunhos de sujeitos que viveram os dois tipos de experiência. No entanto, digo eu que, se são diferentes, nem por isso deixa de ser também muitíssimo significativo que através dos chamados “enteogéneos”, como de outras “tecnologias do êxtase” os humanos procuremos chegar lá, sair deste mundo ou da consciência normal que dele temos desde a dolorosa adolescência. Procuramos todos? Sim, creio que todos, mais ou menos; e mesmo os mais bem adoptados a este mundo, e que acham tudo muito “natural”, sentem a necessidade de sair, de se afastar, de ir de “férias” a ver outras vistas.

O que ficou dito das drogas vale do mesmo modo para a experiência do orgasmo sexual ou a da relação amorosa em geral, incluindo a da maternidade no parto; podem ser condicionantes ocasionadores ou desencadeadores (Laski chama-lhes “triggers”); mas a fenomenologia da experiência extática, em si, não está causalmente dependente de tais ou quais condicionantes: é-lhes inconfundível e irredutível.

Ora bem, o que eu desejaria salientar agora é que em 1 e 2 temos os caracteres essenciais da experiência que estudiosos das religiões como Micea Eliade chamam experiência do “sagrado”, como experiência de uma alteridade radical, que nem por isso deixa de poder manifestar-se no mundo: uma hierofania, como a designou o historiador romeno. E é notável que esse sacrum pode ser apercebido em qualquer objecto mundo, vivo ou não vivo, terrestre ou celeste. Mas, não menos notável, que nunca seja redutível ou se identifique com qualquer objecto aquilo que originariamente é percebido como dotado de uma densidade ontológica superior e axiologicamente mais valioso. A meu ver, a experiência do êxtase, enquanto experiência do sagrado, pode bem ser o fundamento existencial originário da experiência “religiosa”, como universal modalidade comum à diversidade dos modos por que esta se vai com o tempo instituindo nas diversas sociedades humanas; mas não só da “religiosa”, se não esquecermos que, quanto mais recuamos no tempo, tanto mais as manifestações da “cultura” nas sociedades humanas aparecem impregnadas de um carácter “religioso”. Por isso a experiência extática do sagrado e a religiosa, embora associáveis e, de facto, historicamente associadas (e é neste contexto que é costume designar-se por “mística”), terão de considerar-se relativamente independentes e autónomas entre si : a religiosa, quando no caminho da extinção ou mutação cultural, pode subsistir na tradição cultural, durando enquanto esta dure; mas a experiência do sagrado, se é na verdade a experiência de um outro mundo – ou de outra forma de viver o mundo -, não parece estar sujeita ao tempo da nossa experiência deste mundo.

D. Dalila Pereira da Costa foi também uma não menos penetrante e lúcida intérprete do “esoterismo” do nosso Fernando Pessoa. Neste meu postal de hoje, em fraternal mas oposta mente não esqueci quem foi, de certo modo, o mais interior e próximo heterónimo do Pessoa ortónimo, o mais próximo e actual etnónimo desta hora nossa portuguesa, e que escreveu isto de tão longe do riso dell’universo sobre la mer melée au soleil

« Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um sentimento pior do que o tédio mas a que não compete outro nome senão tédio – um sentimento de desolação sem lugar, de naufrágio de toda a alma. Sinto que perdi um Deus complacente, que a Substância de tudo morreu. E o universo sensível é para mim o cadáver de tudo o que amei quando era vida; mas é tudo tornado nada na luz ainda quente das últimas nuvens coloridas. O meu tédio assume aspectos de horror; o meu aborrecimento é um medo. O meu suor não é frio, mas é fria a minha consciência do meu suor. Não há mal-estar físico, salvo que o mal-estar da alma é tão grande que passa pelos poros do corpo e o inunda a ele também. É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo, que não concebo que coisa haja que pudesse servir de lenitivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo. Ir e vir para são a mesma coisa impossível. Esperar e descrer equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de frascos vazios. »