quinta-feira, dezembro 03, 2009

O PODER E O FORMIGUEIRO



« O conceito fundamental das ciências sociais é o Poder. »


Na “Nota Introdutória” que escreveu para a edição inglesa de 1990 de Power. A New Social Analysis (1938), dizia Karl Popper ao historiador da Filosofia Bryan Magee que esse título era, na sua opinião, o melhor livro de Bertrand Russell, afora o magnum opus Principia Mathematica (1910, em co-autoria com Alfred N. Whitehead). E respondia-lhe Magee que se dava a coincidência de ele ter posto a mesma pergunta a Russell e ter obtido do próprio a mesma resposta. Esta obra preferida por dois dos maiores filósofos do séc. XX está disponível em língua portuguesa desde 1993, e a epígrafe supra pertence ao cap. I da mesma: « Ao longo deste livro preocupar-me-ei em provar que o conceito fundamental das ciências sociais é o Poder, no mesmo sentido em que a Energia é o conceito fundamental da Física. »

O poder social e político é um poder que uns seres humanos exercem directa ou indirectamente sobre outros; Russell classifica-o em três géneros principais, que nua e cruamente se exibem “sem disfarces nem pretextos desnecessários” nas nossas relações com os animais ou entre estes: « Quando um porco com uma corda à volta da barriga é içado, guinchando, para dentro de um barco, está a ser sujeito ao poder físico directo sobre o seu corpo. Por outro lado, quando o proverbial burro segue a proverbial cenoura, nós induzimo-lo a agir como desejamos, persuadindo-o de que é no seu interesse que o faz. O meio termo entre estes dois casos é o dos animais amestrados, cujos hábitos foram formados através de recompensas e punições; também, de um modo diferente, o exemplo das ovelhas induzidas a embarcar num barco, quando a líder tem de ser arrastada à força pela passagem de embarque e o resto do rebanho segue depois de livre vontade. Todas estas formas de poder podem ser exemplificadas entre os seres humanos. O exemplo do porco ilustra o poder militar e policial. O burro com a cenoura tipifica o poder da propaganda. Os animais amestrados mostram o poder da “educação”. As ovelhas seguindo a sua líder são ilustração da política partidária, sempre que, como é habitual, um líder venerado está ao serviço duma clique ou de chefes partidários. » O trecho é também um notável exemplo do poder didáctico dos fabulários e do significado e importância destes na cultura humana.

A sequência imediata continua no tom de cáustica ironia que repassa não poucas passagens do livro: « Apliquemos estas analogias esópicas à ascensão de Hitler. [ O leitor reparou que Russell escreve em 1938. ] A cenoura era o programa nazi, envolvendo, por exemplo, a abolição das indemnizações; o burro era a classe média inferior. As ovelhas e o seu líder eram os social-democratas e Hidenburg. Os porcos (apenas no que respeita ao seu infortúnio) eram as vítimas nos campos de concentração, e os animais amestrados são os milhões que fazem a saudação nazi.» Não resisto a outro exemplo saboroso duma ironia que bem poderíamos qualificar de propriamente cínica ao jeito do nosso Diógenes: « O mercenário ou o chefe pirata é uma figura de maior importância na História do que aquela que lhe conferem os historiadores “científicos”. Às vezes, tal como Napoleão, ele é bem sucedido em se tornar o líder de grupos humanos que têm propósitos que são, em parte impessoais; os exércitos franceses consideravam-se a si próprios como os libertadores da Europa, e assim eram vistos na Itália, bem como por muitos na Alemanha; mas o próprio Napoleão nunca produziu mais libertação do que a que parecia vantajosa para a sua carreira. »

Contudo, não faltam no livro advertências sérias do filósofo preocupado com a “ética do poder” e a “domesticação do poder” (títulos dos dois últimos capítulos do livro), filósofo que era também o cidadão que fundou em finais de 60, com outras personalidades relevantes de vários países (entre as quais Jean-Paul Sartre), um Tribunal para os Crimes de Guerra, ainda hoje activo; e que aos 89 anos de idade as autoridades da liberal Inglaterra ainda meteram na prisão por protestar contra a política armamentista nuclear do seu país. Antes de voltarmos qualquer dia a este importante livro de Russell, aqui fica um exemplo desse tipo de advertências, uma que é hoje infelizmente mais séria e mais actual do que na década de 30.

Merece um destaque especial. –