Ficam dois trechos de um livro que é todo ele de ponta a ponta um lúcido aviso, escrito vinte e sete anos depois desse seu clássico do pensamento político aplicado a uma prognose cultural que tem vindo a revelar-se infalível nos mínimos pormenores, e que é o Admirável Mundo Novo (1931). Com uma excepção: a parábola de 31 era datada por Huxley no século VI d. F. (depois de Ford...), enquanto neste livro de 59 o autor aflige-se ao reparar que o Abominável Mundo Novo está ao virar da esquina (chega a falar no séc. XXI...). Algumas observações a propósito dos trechos que ficam em cima. -
1. As “forças impessoais” são, para Huxley, essencialmente duas. Por um lado, o crescimento exponencial da população desequilibrado com os recursos naturais disponíveis; por outro, o crescimento dos poderes do Estado, das burocracias administrativas e das tecnologias que necessariamente derivam das tentativas de controlar a população e corrigir os desequilíbrios. O autor trata destes espectos nos três primeiros capítulos do livro, essencialmente dedicados à Superpopulação e à Super-Organização.
A questão do crescimento populacional teve, desde as teorias do inglês Ricardo Malthus, uma importância fundamental, a começar logo no pensamento de Darwin, como também no do seu primo Francis Galton, o primeiro grande teórico da eugenia. Compreende-se que o inglês Huxley, natural duma relativamente pequena ilha já sem extensos territórios coloniais, e educado numa tradição cultural que tolerava sem grandes escrúpulos o eugenismo malthusiano, se afligisse com excessos populacionais...
Deve dizer-se, porém, que, em termos da ecologia planetária, ninguém está em condições de saber qual seja o limite óptimo na relação população-recursos. Pelo contrário, não me admirava nada que, a ser rigorosamente possível uma tal comparação, concluíssemos que os seis mil milhões de habitantes de hoje vivem em média, nos países ricos e nos pobres, comparativamente melhor do que os quinhentos milhões que viviam no séc. XVI. E nada impede que, minimizados ou corrigidos os impactos ambientais com utilização doutras energias e melhor aplicação e distribuição dos recursos, a Terra não possa sustentar outros tantos mil milhões. É que a questão não é, ou não é evidente que o seja para já, a quantidade de pessoas e de recursos, mas a distribuição territorial dessas pessoas, a qualidade do aproveitamento dos recursos e a distribuição do produto e riqueza disponíveis. A questão da sobrepopulação, a pretexto de preocupações “científicas” de duvidoso ou nulo fundamento, não se livra também da suspeita de encobrir outra questão: a das populações indesejáveis. É de lembrar, a propósito, aquele desgraçado programa governamental, que durou quarenta anos, de 1927 a 67, e que transferiu da terra de Aldous Huxley para a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e outras terras da “Commonwealth” necessitadas de mão-de-obra migrante cerca de cento e trinta mil crianças pobres dos orfanatos britânicos. Com públicas promessas de um melhor futuro, muitas delas foram sujeitas a sevícias físicas e psicológicas de toda a espécie e a regimes de trabalho escravo e gratuito.
2. Também não é evidente que haja alguma linear relação necessária entre aumento populacional, por um lado, e o incremento da burocracia administrativa e de um poder centralizador e totalitário. (O Império Romano dominava uma vasta extensão territorial e populacional, mas nem era centralizador nem totalitário.) Estes dois últimos terão mais a ver com a concentração territorial da população (mais uma vez as variáveis de geografia humana e ordenação territorial) e, sobretudo, com a qualidade das relações interpessoais, a forma de organização (ou desorganização) social e política dos grupos, e a disponibilidade de poderosas tecnologias de vigilância, controlo e repressão.
3. Quanto às “forças de outra índole”, a que se refere, são examinadas nos capítulos seguintes do livro, dedicados à boa e má “Propaganda”; ao Marketing; à “Lavagem ao Cérebro”; à “Persuasão Química” (condicionamento das mentes e comportamentos através de fármacos e drogas “recreativas”); à Persuação e Reprogramação subconscientes (através da percepção “subliminar” e de técnicas inspiradas na hipnose).
4. Nos dois últimos capítulos – “Educação para a Liberdade” e “O que Podemos Fazer?” -, Huxley ensaia perspectivas de possível reacção que me deixaram a impressão de vagas, frouxas e pouco convictas., talvez porque fragilizado pelo fatalismo do "pode, e sem dúvida acontecerá". Mas vejamos o último parágrafo que fecha o livro: « Entretanto, resta ainda alguma liberdade no mundo. É verdade que muitos jovens não parecem apreciá-la. Mas um certo número de pessoas crêem ainda que sem ela os seres humanos não podem tornar-se verdadeiramente humanos e que a liberdade é, portanto, um valor supremo. Talvez as forças que ameaçam agora o mundo sejam demasiado possantes para que se lhes possa resistir durante muito tempo. É ainda dever nosso fazer tudo o que pudermos para lhes resistir. »
A alusão a “muitos jovens” tem um contexto próximo no livro. O autor referia sondagens recentes da opinião pública ( norte-americana) que « revelaram que a maioria dos adolescentes abaixo dos vinte anos, os eleitores de amanhã, não crêem nas instituições democráticas, não vêem inconveniente na censura das ideias impopulares, não julgam possível um governo do povo pelo povo e julgar-se-iam perfeitamente satisfeitos por serem governados de cima por uma oligarquia de peritos qualificados, se puderem continuar a viver segundo o estilo a que a prosperidade os habituou. Que tantos jovens espectadores bem alimentados pela televisão, na mais poderosa democracia do mundo, sejam tão totalmente indiferentes à ideia de se governarem a si próprios que se interessem tão pouco pela liberdade de pensamento e pelo direito de discordar, é triste mas não muito surpreendente. »
Huxley não se surpreende porque isto é mais um indicador sociológico do seu próprio diagnóstico e prognóstico cultural. Não parece restar mais, contra essas fatais derivas da sociedade, que apelar para uma inesperada “alteração das circunstâncias”. Veja-se:
« A juventude que pensa agora de uma forma tão rasteira, poderá crescer para lutar pela liberdade. O grito de “Dêem-me televisão e cachorros-quentes”, mas não me assustem com as responsabilidades da liberdade, pode dar lugar, sob uma alteração das circunstâncias, ao grito de “Dêem-me a liberdade ou a morte”. Se tal revolução se efectuar... »
5. O autor inglês escrevia em 1958. Sabemos hoje que sobre essa data não passaram muitos anos sem que as circunstâncias se “alterassem” e viesse uma certa “revolução”... Foi o europeu Maio de 68, o Vietname e a contestação juvenil à guerra, a revolução hippie, que parecia reivindicar antes “Dêem-me a liberdade para viver outro tipo de vida!” Mas também sabemos hoje mais: que tal reivindicação era minoritária e evadia-se nos acid dreams; que o grito “Dêem-me televisão e cachorros quentes” era perfeitamente consequente com o “Livrem-me de ir para o Vietname” e é agora com o “Dêem-me videojogos e ecstasy”; que o Vietname interrompido prosseguiu e prossegue transferido para outras paragens, substituída a “ameaça comunista” pela “ameaça terrorista”. Conclusão: as circunstâncias alteraram-se... e tudo segue pela mesma via.
6. Também, quanto aos jovens (e menos jovens), me não surpreende. Mas para mim o motivo pode condensar-se numa palavra: Medo. Têm medo! Estão aterrorizados!
Sobre isto não resisto a citar umas palavras que bem podem servir como...
OUTRO AVISO
O leitor interessado encontra-as no Posfácio da monumental História da CIA, de Tim Weiner (trad. port. 2008 dum original do ano anterior), subintitulada significativamente: Um Legado de Cinzas. São do general Colin Powell, que na primeira administração Bush Jr. tentou frustemente moderar a vesânia belicista do executivo. As palavras são dele, a ênfase minha:
« Qual é a maior ameaça que enfrentamos agora? (...) A única coisa que pode realmente destruir-nos somos nós próprios. Não devíamos usar o medo com finalidades políticas, amedrontar as pessoas para que votem em nós ou para que criemos um complexo industrial de terror. »
1. As “forças impessoais” são, para Huxley, essencialmente duas. Por um lado, o crescimento exponencial da população desequilibrado com os recursos naturais disponíveis; por outro, o crescimento dos poderes do Estado, das burocracias administrativas e das tecnologias que necessariamente derivam das tentativas de controlar a população e corrigir os desequilíbrios. O autor trata destes espectos nos três primeiros capítulos do livro, essencialmente dedicados à Superpopulação e à Super-Organização.
A questão do crescimento populacional teve, desde as teorias do inglês Ricardo Malthus, uma importância fundamental, a começar logo no pensamento de Darwin, como também no do seu primo Francis Galton, o primeiro grande teórico da eugenia. Compreende-se que o inglês Huxley, natural duma relativamente pequena ilha já sem extensos territórios coloniais, e educado numa tradição cultural que tolerava sem grandes escrúpulos o eugenismo malthusiano, se afligisse com excessos populacionais...
Deve dizer-se, porém, que, em termos da ecologia planetária, ninguém está em condições de saber qual seja o limite óptimo na relação população-recursos. Pelo contrário, não me admirava nada que, a ser rigorosamente possível uma tal comparação, concluíssemos que os seis mil milhões de habitantes de hoje vivem em média, nos países ricos e nos pobres, comparativamente melhor do que os quinhentos milhões que viviam no séc. XVI. E nada impede que, minimizados ou corrigidos os impactos ambientais com utilização doutras energias e melhor aplicação e distribuição dos recursos, a Terra não possa sustentar outros tantos mil milhões. É que a questão não é, ou não é evidente que o seja para já, a quantidade de pessoas e de recursos, mas a distribuição territorial dessas pessoas, a qualidade do aproveitamento dos recursos e a distribuição do produto e riqueza disponíveis. A questão da sobrepopulação, a pretexto de preocupações “científicas” de duvidoso ou nulo fundamento, não se livra também da suspeita de encobrir outra questão: a das populações indesejáveis. É de lembrar, a propósito, aquele desgraçado programa governamental, que durou quarenta anos, de 1927 a 67, e que transferiu da terra de Aldous Huxley para a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e outras terras da “Commonwealth” necessitadas de mão-de-obra migrante cerca de cento e trinta mil crianças pobres dos orfanatos britânicos. Com públicas promessas de um melhor futuro, muitas delas foram sujeitas a sevícias físicas e psicológicas de toda a espécie e a regimes de trabalho escravo e gratuito.
2. Também não é evidente que haja alguma linear relação necessária entre aumento populacional, por um lado, e o incremento da burocracia administrativa e de um poder centralizador e totalitário. (O Império Romano dominava uma vasta extensão territorial e populacional, mas nem era centralizador nem totalitário.) Estes dois últimos terão mais a ver com a concentração territorial da população (mais uma vez as variáveis de geografia humana e ordenação territorial) e, sobretudo, com a qualidade das relações interpessoais, a forma de organização (ou desorganização) social e política dos grupos, e a disponibilidade de poderosas tecnologias de vigilância, controlo e repressão.
3. Quanto às “forças de outra índole”, a que se refere, são examinadas nos capítulos seguintes do livro, dedicados à boa e má “Propaganda”; ao Marketing; à “Lavagem ao Cérebro”; à “Persuasão Química” (condicionamento das mentes e comportamentos através de fármacos e drogas “recreativas”); à Persuação e Reprogramação subconscientes (através da percepção “subliminar” e de técnicas inspiradas na hipnose).
4. Nos dois últimos capítulos – “Educação para a Liberdade” e “O que Podemos Fazer?” -, Huxley ensaia perspectivas de possível reacção que me deixaram a impressão de vagas, frouxas e pouco convictas., talvez porque fragilizado pelo fatalismo do "pode, e sem dúvida acontecerá". Mas vejamos o último parágrafo que fecha o livro: « Entretanto, resta ainda alguma liberdade no mundo. É verdade que muitos jovens não parecem apreciá-la. Mas um certo número de pessoas crêem ainda que sem ela os seres humanos não podem tornar-se verdadeiramente humanos e que a liberdade é, portanto, um valor supremo. Talvez as forças que ameaçam agora o mundo sejam demasiado possantes para que se lhes possa resistir durante muito tempo. É ainda dever nosso fazer tudo o que pudermos para lhes resistir. »
A alusão a “muitos jovens” tem um contexto próximo no livro. O autor referia sondagens recentes da opinião pública ( norte-americana) que « revelaram que a maioria dos adolescentes abaixo dos vinte anos, os eleitores de amanhã, não crêem nas instituições democráticas, não vêem inconveniente na censura das ideias impopulares, não julgam possível um governo do povo pelo povo e julgar-se-iam perfeitamente satisfeitos por serem governados de cima por uma oligarquia de peritos qualificados, se puderem continuar a viver segundo o estilo a que a prosperidade os habituou. Que tantos jovens espectadores bem alimentados pela televisão, na mais poderosa democracia do mundo, sejam tão totalmente indiferentes à ideia de se governarem a si próprios que se interessem tão pouco pela liberdade de pensamento e pelo direito de discordar, é triste mas não muito surpreendente. »
Huxley não se surpreende porque isto é mais um indicador sociológico do seu próprio diagnóstico e prognóstico cultural. Não parece restar mais, contra essas fatais derivas da sociedade, que apelar para uma inesperada “alteração das circunstâncias”. Veja-se:
« A juventude que pensa agora de uma forma tão rasteira, poderá crescer para lutar pela liberdade. O grito de “Dêem-me televisão e cachorros-quentes”, mas não me assustem com as responsabilidades da liberdade, pode dar lugar, sob uma alteração das circunstâncias, ao grito de “Dêem-me a liberdade ou a morte”. Se tal revolução se efectuar... »
5. O autor inglês escrevia em 1958. Sabemos hoje que sobre essa data não passaram muitos anos sem que as circunstâncias se “alterassem” e viesse uma certa “revolução”... Foi o europeu Maio de 68, o Vietname e a contestação juvenil à guerra, a revolução hippie, que parecia reivindicar antes “Dêem-me a liberdade para viver outro tipo de vida!” Mas também sabemos hoje mais: que tal reivindicação era minoritária e evadia-se nos acid dreams; que o grito “Dêem-me televisão e cachorros quentes” era perfeitamente consequente com o “Livrem-me de ir para o Vietname” e é agora com o “Dêem-me videojogos e ecstasy”; que o Vietname interrompido prosseguiu e prossegue transferido para outras paragens, substituída a “ameaça comunista” pela “ameaça terrorista”. Conclusão: as circunstâncias alteraram-se... e tudo segue pela mesma via.
6. Também, quanto aos jovens (e menos jovens), me não surpreende. Mas para mim o motivo pode condensar-se numa palavra: Medo. Têm medo! Estão aterrorizados!
Sobre isto não resisto a citar umas palavras que bem podem servir como...
OUTRO AVISO
O leitor interessado encontra-as no Posfácio da monumental História da CIA, de Tim Weiner (trad. port. 2008 dum original do ano anterior), subintitulada significativamente: Um Legado de Cinzas. São do general Colin Powell, que na primeira administração Bush Jr. tentou frustemente moderar a vesânia belicista do executivo. As palavras são dele, a ênfase minha:
« Qual é a maior ameaça que enfrentamos agora? (...) A única coisa que pode realmente destruir-nos somos nós próprios. Não devíamos usar o medo com finalidades políticas, amedrontar as pessoas para que votem em nós ou para que criemos um complexo industrial de terror. »
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