quinta-feira, janeiro 28, 2010

MAIS AVISOS


« Nós, no Ocidente, tivemos a felicidade inestimável de nos ter sido dada uma boa oportunidade de fazermos a grande experiência do auto-governo. Infelizmente, parece agora que, devido a modificações recentes do nosso ambiente, essa oportunidade infinitamente preciosa está a ser, pouco a pouco, afastada de nós. E isto talvez não seja tudo. Estas forças impessoais não são as únicas inimigas da liberdade individual e das instituições democráticas. Há também forças de outra índole, menos abstracta, forças que podem ser deliberadamente usadas por homens ávidos de poder, cujo objectivo é estabelecer um controlo parcial ou total sobre os seus semelhantes. Há cinquenta anos, quando eu era rapaz, parecia completamente evidente que os maus dias de outrora tinham acabado, que a tortura e o massacre e a escravidão e a perseguição do herético eram coisas do passado. Para as pessoas que usavam chapéu alto, viajavam em combóios e tomavam banho todas as manhãs, tais horrores estavam simplesmente fora de questão. Alguns anos mais tarde, estas pessoas, que tomavam banho diário e iam à igreja, cometiam atrocidades numa escala que os Africanos e os Asiáticos mergulhados nas trevas nunca tinham sonhado. À luz da história recente, seria loucura não supor que esta espécie de coisas não pode voltar a acontecer outra vez. Pode e, sem dúvida, acontecerá. Mas, no futuro imediato, há alguma razão para crermos que os métodos punitivos de 1984 darão antes lugar aos reforços e manipulações comportamentais do Admirável Mundo Novo.

(...)

« A melhor das constituições e das leis preventivas não terá qualquer poder contra a pressão incessantemente crescente da superpopulação e de um excesso de organização imposto pelo número sempre crescente dos seres humanos e pelos progressos da técnica. As constituições não serão abrogadas e as boas leis permanecerão nos códigos; mas estas formas liberais apenas servirão para mascarar e adornar uma substância profundamente totalitária. Não dominado o excesso de população e o excesso de organização, podemos prever, em países democráticos, uma inversão do processo que transformou a Inglaterra numa democracia, ao mesmo tempo que retinha todas as formas exteriores de uma monarquia. Sob a pressão impiedosa de uma superpopulação crescente e de uma crescente super-organização, e por meio de métodos cada vez mais eficazes de manipulação do espírito, as democracias mudarão a sua natureza; as velhas formas pitorescas – eleições, parlamentos, Supremos Tribunais e tudo o resto – subsistirão. A substância subjacente será uma nova espécie de totalitarismo não violento. Todos os nomes tradicionais, todos os rótulos consagrados ficarão exactamente como eram nos velhos tempos, a democracia e a liberdade serão os temas de todas as emissões radiodifundidas e de todos os artigos de fundo – mas tratar-se-á de uma democracia e de uma liberdade num sentido estritamente pickwickiano. [ O autor alude a uma personagem célebre, Mr. Pickwick, do romancista Charles Dickens. Pickwickian ficou na língua inglesa denotando uma atitude de provincianismo simplório e farsista, sem capacidade nem substância. ] Entretanto, a oligarquia dirigente e a sua altamente treinada elite de soldados, polícias e manipuladores de cérebros dirigirão o espectáculo como lhes aprouver. »

Aldou Huxley, Regresso ao Admirável Mundo Novo, (1959) trad. port. de Rogério Fernandes, Lisboa, s.d..