PADRÕES LUSÍADAS
Já a manhã clara dava nos outeiros
Por onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta pela proa.
Já fora de tormenta e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa.
Disse alegre o piloto melindano:
- « Terra é de Calecu, se não me engano.
Esta é por certo a terra que buscais
Da verdadeira Índia, que aparece;
E se do mundo mais não desejais,
Vosso trabalho longo aqui fenece.»
Sofrer aqui não pôde o Gama mais,
De ledo em ver que a terra se conhece;
Os joelhos no chão, as mãos ao Céu,
A mercê grande a Deus agradeceu.
As graças a Deus dava, e razão tinha,
Que não somente a terra lhe mostrava,
Que com tanto temor buscando vinha,
Por quem tanto trabalho experimentava,
Mas via-se livrado tão asinha
Da morte que no mar lhe aparelhava
O vento duro, férvido e medonho,
Como quem despertou de horrendo sonho.
Por meio destes hórridos perigos,
Destes tarbalhos graves e temores,
Alcaçam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores:
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zibelinos;
Não co’os manjares novos e esquisitos;
Não co’os passeios moles e ociosos;
Não co’os vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não co’os nunca vencidos apetitos,
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nunhum que o passe mude
Para alguma obra heróica de virtude;
Mas com buscar, co’ o seu forçoso braço,
Que ele chame próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul e regiões de abrigo nuas,
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado c’um árduo sofrimento;
E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Para o pelouro ardente que assobia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte o peito um calo honroso cria,
Desprezador das honras e de dinheiro,
Das honras e dinheiro que a ventura
Forjou, e não virtude justa e dura.
Destarte se esclarece o entendimento,
Que experiências fazem repousado,
E fica vendo, como de alto assento,
O baixo trato humano embaraçado.
Este, onde tiver força o regimento
Direito, e não de afeitos ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre mando,
Contra vontade sua, e não rogando.
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Um ramo na mão tinha... Mas, oh cego,
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos mavórcios inumanos,
Qual Cánace que à morte se condena
Numa mão sempre a espada e noutra a pena.
Agora, com pobreza aborrecida,
Por hospícios alheios degradado;
Agora, da esperança já adquirida,
De novo mais que nunca derribado;
Agora, às costas escapando a vida,
Que dum fio pendia tão delgado,
Que não menos milagre foi salvar-se
Que para o rei judaico acrescentar-se.
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram!
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assim sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Para espertar engenhos curiosos,
Para porem as coisas em memória
Que merecerem ter eterna glória!
Pois logo, em tantos males, é forçado
Que só vosso amor me não faleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça:
Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado
Que não no empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subido,
Sob pena de não ser agradecido.
Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse
A quem ao bem comum e do seu rei
Antepuser seu próprio interesse,
Imigo da divina e humana lei.
Nenhum ambicioso que quisesse
Subir a grandes cargos cantarei,
Só por poder com torpes exercícios
Usar mais largamente de seus vícios;
Nenhum que use de seu poder bastante
Para servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio;
Nem, camenas, também cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o rei no ofício novo
A despir e roubar o pobre povo;
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do rei severamente,
E não acha que é justo o bom respeito
Que se pague o suor da servil gente;
Nem quem sempre, com pouco experto peito,
Razões aprende - e cuida que é prudente -
Para taxar, com mão rapace e escassa,
Os trabalhos alheios que não passa.
Aqueles sós direi que aventuraram
Por seu Deus, por seu rei a amada vida,
Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão bem de suas obras merecida.
Apolo e as Musas, que me acompanharam,
Me dobrarão a fúria concedida,
Enquanto eu tomo alento, descansado,
Para tornar ao trabalho, mais folgado.
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 92-99 e VII, 78-87.
« Em tempos passados havia neste colégio da Baía um escravozinho comprado, com pouco mais de doze anos de idade, de raça negra, natural do interior da barbaria de Angola, já feito cristão, bem instruído nos mistérios da nossa fé e apontado a dedo pela inteligência vivaz e pronta que bem mostrava. Perguntei-lhe eu certo dia: - “ Ó Bernardo (tal se chamava), diz-me cá e diz-me a verdade: Estás contente com a tua servidão? E dás tu graças a Deus, que te arrancou às trevas da cega gentilidade, e que, trazendo-te ao Brasil, quis que servisses, não a um senhor secular, mas aos religiosos da nossa Companhia de Jesus, vivendo do alimento dos mistérios e da moral cristãos, para morreres encaminhado ao Céu? De outro modo, se tivesses permanecido onde nasceste, irias para o Inferno torturado pelas chamas eternas onde abrasam teus antepassados, que não conheceram a Deus... ”
Ele deteve-se um pouco, consultando-se consigo, de senho levantado, e respondeu intrépido e seguro de si: - “ Os meus avós e os meus antepassados não estão no Inferno.” E não houve de perguntar-lhe porquê, acrescentando logo:- “ Porque, se eles não conheceram a Deus, como podia Deus mandá-los para o Inferno? Ou como podiam eles tanto ofender a Deus ignorado, que merecessem tais tormentos?” Admirado com a lógica claríssima e a resposta inesperada do teólogo negrinho, para o apanhar noutro laço, e como que minimizando e ridicularizando o que eu antes dissera, insisti: - “Na tua terra e entre essas gentes os roubos, os adultérios, os homicidíos e outras coisas assim não são considerados maus, injustos e contrários à razão?” – “Com certeza”, respondeu. E rematei: - “Portanto, se os teus antepassados fossem desculpados do Inferno porque não conheceram a Deus, pelo menos seriam justissimamente castigados com essas penas por tão graves crimes”. – “Esse (volveu ele) é outro motivo que mesmo assim me não parece bastante para que sejam eternas e sem fim as penas a que hão de ser condenados. Na verdade, dá-se com os brancos que se um matar outro é morto na forca, suplício que acaba em um momento. E, assim, que perde o enforcado? A vida, é certo; e de facto é justo que perca a vida quem privou a outro da vida, para que haja uma compensação igual e a pena equivalha a culpa. Mas, nem a vida do assassinado nem a do assassino haviam de durar perpetuamente; portanto, como é que um homicida que não conheceu a Deus deverá ser castigado por Deus (e Deus de infinita misericórdia), não com suplício temporal e finito, mas com perenais penas no Inferno, que hão de durar eternamente, para compensar uma vida mortal, que de si não dura perpetuamente? »
Quedei como assombrado de ouvir o nosso Bernardo a filosofar com tão clara mente sobre ponto tão obscuro; mas louvei-me de ter notícia, por uma criança inda longe de adulta e inda há pouco gentia, de como era conhecida pela luz natural da razão uma conclusão que os mais doutos teólogos trazem muito disputada e digladiando entre si. »
Padre António Vieira, Chave dos Profetas, Livro III, cap. IV, § II. (Edição crítica e tradução do latim por Arnaldo Espírito Santo, 2001)
Ele deteve-se um pouco, consultando-se consigo, de senho levantado, e respondeu intrépido e seguro de si: - “ Os meus avós e os meus antepassados não estão no Inferno.” E não houve de perguntar-lhe porquê, acrescentando logo:- “ Porque, se eles não conheceram a Deus, como podia Deus mandá-los para o Inferno? Ou como podiam eles tanto ofender a Deus ignorado, que merecessem tais tormentos?” Admirado com a lógica claríssima e a resposta inesperada do teólogo negrinho, para o apanhar noutro laço, e como que minimizando e ridicularizando o que eu antes dissera, insisti: - “Na tua terra e entre essas gentes os roubos, os adultérios, os homicidíos e outras coisas assim não são considerados maus, injustos e contrários à razão?” – “Com certeza”, respondeu. E rematei: - “Portanto, se os teus antepassados fossem desculpados do Inferno porque não conheceram a Deus, pelo menos seriam justissimamente castigados com essas penas por tão graves crimes”. – “Esse (volveu ele) é outro motivo que mesmo assim me não parece bastante para que sejam eternas e sem fim as penas a que hão de ser condenados. Na verdade, dá-se com os brancos que se um matar outro é morto na forca, suplício que acaba em um momento. E, assim, que perde o enforcado? A vida, é certo; e de facto é justo que perca a vida quem privou a outro da vida, para que haja uma compensação igual e a pena equivalha a culpa. Mas, nem a vida do assassinado nem a do assassino haviam de durar perpetuamente; portanto, como é que um homicida que não conheceu a Deus deverá ser castigado por Deus (e Deus de infinita misericórdia), não com suplício temporal e finito, mas com perenais penas no Inferno, que hão de durar eternamente, para compensar uma vida mortal, que de si não dura perpetuamente? »
Quedei como assombrado de ouvir o nosso Bernardo a filosofar com tão clara mente sobre ponto tão obscuro; mas louvei-me de ter notícia, por uma criança inda longe de adulta e inda há pouco gentia, de como era conhecida pela luz natural da razão uma conclusão que os mais doutos teólogos trazem muito disputada e digladiando entre si. »
Padre António Vieira, Chave dos Profetas, Livro III, cap. IV, § II. (Edição crítica e tradução do latim por Arnaldo Espírito Santo, 2001)
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