quinta-feira, junho 03, 2010

EVOLUÇÃO NATURAL E LEI MORAL

A consciência moral é a consciência do bem e do mal, e estes termos claros e singelos têm a primária vantagem de evidenciar imediatamente a sua universalidade no género humano, pelo menos no “sapiens” moderno, com cerca de duas centenas de milhares de anos.

Que os sujeitos de tal consciência moral tenham Direitos Humanos que, por serem iguais em todos os indivíduos, todos igualmente devem querer respeitar, põe imediatamente uma questão fundamental : a da Dignidade. – O que é que há em todos os humanos de tal maneira valioso que eu não deva querer por qualquer maneira atentar contra esses Direitos, na minha pessoa e na dos outros? (Ao menos não sou eu “proprietário” de mim e, livremente, com “autonomia”, não teria eu o direito de renunciar a eles na minha pessoa?...) De outra maneira equivalente: como é que do facto da existência de uma razão ou de uma consciência moral chegamos a um valor tal – a Dignidade -, que obrigue a um respeito absoluto, irrestrito a quaisquer circunstância ou alheios fins?

Suponha o leitor este cenário baseado numa História em voga, que decerto lhe é já familiar. –

Há cerca de quinze milhões de anos, no sul de África, uma espécie de símios terá sido o tronco de onde brotaram dois ramos diferentes: um, de onde viriam a surgir os símios antropomorfos actuais (orangos, gorilas, chimpanzés); outro, de onde sairia milhões de anos depois uma espécie de hominídeos chamados “australopitecos”; e deste ramo brotaram outros ramos, dos quais um chamado “homo sapiens”; deste ainda derivariam (pelo menos) dois ramos diferentes: o dos “neandertais”, que se extinguiu há cerca de trinta mil anos, e o outro que sobreviveu no tempo e somos nós hoje. (Não tão diferentes assim: as últimas informações vão no sentido de um cruzamento genético dos dois ramos, de que a nossa criança do Lapedo era já tida como um raro exemplar conhecido.) Como se sabe, tal evolução nada tem de diferente da das mais espécies vivas: todas elas evoluem no tempo sujeitas a uma lei natural de selecção das mais bem sucedidas na adaptação ao meio e na reprodução dos respectivos genes; as outras, eventualmente acabam por extinguir-se.

Ora bem, coisas como a “razão”, a “vontade”, a “consciência moral” poderiam não ser mais, no sapiens moderno titular delas, senão efeitos necessitados e causas necessitantes da nossa adaptação e sobrevivência; por outras palavras, a explicação (única) de termos sido nós os seleccionados sobreviventes ( e não os neandertais, por exemplo). Aí está, se quisermos falar uma linguagem mais humana ou humanista, o seu “valor” e “dignidade”: é o prémio de um triunfador evolutivo.

Já temos o preciso para ver bem que, nesta perspectiva, o que possa haver nos humanos de “valioso” é meramente instrumental e submisso à sobredeterminação de uma Lei Natural (biológica) estritamente impessoal e aparentemente indiferente (como todas as leis naturais) ao facto de existirem ou deixarem de existir seres humanos de qualquer espécie. E, relativamente a todas as espécies vivas, nós não temos nada de excepcional.

Mais ainda. A História continua, continua o tempo, a evolução não pára. Nada garante a priori que se o assunto “Direitos Humanos” pôde ter algum circunstancial interesse evolutivo (se não foi só o restritamente político de revoluções classistas e de etnocentrismos em processo de hegemonia global), esse interesse não se venha a desvanecer, alteradas as condições do meio; ou não se torne mesmo perigoso, pelo menos para aqueles que persistem em atribuir-lhe um valor irrestrito e incondicionado...

Enfim, nada garante que tais Direitos não tenham de vir a ser desconsiderados e, com o tempo, desaparecidos e esquecidos por uma espécie nova de seres em processo de emergência a partir do sapiens actual. Uma tal espécie seria diferente se, por exemplo, não tivesse qualquer “consciência moral”, e para ela a questão dos Direitos Humanos faria tanto sentido como o (não) teria para as espécies precedentes do género “homo” ou coexistentes com o sapiens (como os neandertais).

Se esta História é tudo o que, basicamente, de mais significativo há para contar – porque é o que mais conta! -, e se o humano é (como cria Nietzsche) um ser “a ultrapassar”, parece que não haveria mais valor senão este: abrir lugar para o “ubermensch”, saudar a sua chegada, eventualmente servi-lo por um certo tempo e, depois, desaparecer no cemitério das espécies extintas. Isto poderia ser... morrer com “dignidade”.

O cenário naturalista é precioso. – Em primeiro lugar, porque há quem, com aparente boa fé, o credite verdadeiro e... pode ser verdadeiro. Em segundo, porque, colocando-nos num cenário o mais próximo possível dum mundo amoral (os “valores” e “deveres” morais seriam, como tudo no mundo, nada mais que fenómenos da Natureza favoráveis ou desfavoráveis à evolução da espécie), dá-nos em contrapartida um sinal de o que poderia ser de tal maneira estranho (alheio) a esse mundo que nos daria uma razão ou critério suficiente de uma Dignidade substanciadora de Direitos respeitáveis em todos os indivíduos da espécie. O que é que poderia ser tal? Se o cenário naturalista não nos propõe senão leis naturais, procuremos do lado de uma Lei a mais afastada possível desse género de leis, e de tal modo afastada que sobrepassa (e pode opor-se) a todas as considerações da primazia do interesse subjectivo dos indivíduos, dos fins da felicidade individual ou grupal e - até! - da sobrevivência biológica.

Trata-se, como o leitor já adivinhou, da lei moral modernamente formulada por Kant, que é como um princípio formal – que trata da forma da minha vontade, enquanto ser racional, mais que do seu conteúdo psicológico concreto – que serve de regra para todas as leis que pretendam ser propriamente morais : os meus actos são eticamente relevantes se a lei da minha vontade puder valer, em todos os casos, igualmente como lei da vontade de todos os mais indivíduos racionais. Isto faz da lei (moral) da vontade de um indivíduo uma lei universal : - « e a dignidade da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser [o sujeito racional] legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legislação », diz Kant, e sublinho eu. De facto, o que pode haver de mais digno para mim do que poder a forma da minha própria vontade valer universalmente ?

Teríamos, pois, encontrado na natureza racional do homem uma Lei (moral) para a comunidade universal dos seres racionais – uma comunidade a que o mesmo filósofo chama Reino dos Fins (um reino em que todos são soberanos). Sob o império desta Lei, a minha pessoa e todas as mais pessoas não podem ser apenas um meio intrumental da minha vontade – se é uma vontade boa-, mas sempre e simultaneamente devem valer como fins em si; isto é, como sendo, enquanto pessoas racionais, fins respeitáveis em si e por si mesmas, que não podem subordinar-se a outros fins. Mais ainda: se eu posso fazer aquilo que quero (bem) e essa é a minha vontade própria (enquanto propriamente racional), então nenhuma outra qualquer vontade (boa) de qualquer ser racional – nem mesmo Deus! – poderá limitar ou opor-se à minha vontade; por isso, se a minha vontade pode ser legisladora universal, também pode ser ilimitadamente livre.

Agora convido o leitor a considerar por si se esta Lei Moral kantiana responde cabalmente à questão posta na entrada deste apontamento de hoje. Conferirei em breve consigo a minha resposta.