sexta-feira, julho 30, 2010

TERRA DO PARAÍSO

Eu quis, lembrando o que fora,
Futurar quanto seria:
Que, pelos tempos de agora,
Só quem olhar aos de outrora
Crê em vindoira alegria.

O que foi, será. Adiante
Vai a candeia, e que faz?
Deita as sombras para trás...
- Louco e ingrato Caminhante,
Donde vens? – Nem saberás!

E tudo volta... Criada
Foi a Luz por nosso bem:
Não pode ser apagada,
Só porque as sombras do Nada
Andem n’alminha dalguém.

A terra, em culpa e malícia,
(inda que tojos a comem)
Voltará a ser propícia:
Pois se fez para delícia
De jardins, homem por homem.

E ninguém sabe, afinal,
Se não calca, em duro piso
E em negro passo indeciso
(Anda-me ouvir, Portugal!)
A Terra do Paraíso...

(...)

Ó Paraíso da terra!
Ó terra do Paraíso
Onde Satã nos fez guerra:
Entre que mar, vale ou serra,
Sorriu Deus no teu sorriso?

Não o diz o Livro Santo,
Ou conta-o de tal maneira,
Que não há eira nem beira
Que não presuma um recanto
Da virgem terra primeira.

Luz que Deus nos acendia,
Desfeita em sombras fatais...
-Onde foi? Onde estaria
(Perguntei: ninguém sabia!)
O berço de Nossos Pais?

Em Portugal?... Pois seria!
Que, no mundo em redor,
Terra assim onde a haveria,
Para ser Deus, algum dia,
Jardineiro e lavrador?

Águas, luz, aves em bando,
Veigas de pão, roseirais;
Que jardim valera mais,
Para andarem passeando
Eva e Adão, nossos Pais?

Onde sol mais a contento?
E sombras mais a carinho?
O vale em forma de ninho;
As serras dizendo ao vento:
- «Amigo! vai de mansinho...»

Onde a rosa mais ardente?
Doirados pomos assim?
Sombra a fugir, no jardim,
Como um vulto de Serpente,
Atrás de ti e de mim?

Onde um Anjo Guardião
Mais firme do que a montanha?
Onde maior tentação
Do que o mar (serpente ou não...)
Caminho da terra estranha?

Ó chama de altos Destinos
Desfeitos em cinza vã!
-Onde houve, em noite ou manhã,
Mais longos passos divinos?
Maior sombra de Satã?

Nas angústias de quem chora,
Portugal, o teu Sentido
É Saudade: entendo-a agora...
- Ó Paraíso de outrora,
Meu Paraíso perdido!

Em seu amor que não cansa,
Inda, na terra, o profundo
Reverdecer, é lembrança
Do que foi, cheia de esp’rança,
Quando Deus fez este mundo;

(...)

- Ó Cavador, meu amigo,
Meu irmão e companheiro:
Anda daí! Vem comigo,
Por entre as vinhas e o trigo,
Ao cimo daquele oiteiro.

Descansa a enxada, um momento;
Tempo não perdes, que, enfim,
Também o meu Pensamento
Revolve as sombras: e intento
Cavar por ti e por mim.

(...)

Serás, tu, a sombra ingente
De quanta humana criatura
Ergueu a Enxada à altura,
Desde a primeira semente
Que tombou na leiva escura.

Eu serei, em vão segundo,
Eco de toda a Palavra
(Oração, canto profundo)
Que passa, em luz, sobre o mundo,
E também semeia e lavra.

(...)

De nada eu sei mais diverso,
Sendo, afinal, meu irmão:
- Meter arados ao chão;
Cavarmos, de verso a verso,
Nosso arreto: o coração.

(...)

Tempo de hoje é negro véu
Do que foi, será de novo...
- Cavador, vem a mais eu;
Em vozes de lumaréu,
Anda pregar ao Povo:

- “Há céu. Lá cima; e, no chão,
Outro céu, sob os meus passos:
Vinde-os ganhar onde estão,
Pela força da oração,
Ao jeito dos nossos braços.”

(...)

Cheia a arca, cheia a tulha;
Maré viva a eira e a adega.
E, das sachas à debulha,
Como pomba quando arrulha,
Arrulhos de água de rega.

Ao sol, nas ceifas e mondas
Rapazes e raparigas
Bailarão, cantando em rondas,
À semelhança das ondas,
Ao marulhar das espigas.

Nem invejas, nem pobreza!
Nem desmaios de saúde!
Lar em chama, almas em reza;
Cubas de azeite em represa,
Lagar de vinho em açude.

(...)

Sem paixão entremetida,
Caia em Domingo de Ramos
Eterna Páscoa florida...
- E seja a Festa da Vida,
A que tu vás, e nós vamos.

O que foi, será... A terra
Começou num Paraíso:
E (Deus o quer!) é preciso
Que torne, do vale à serra,
Seu edénico sorriso.

(...)

E trago no meu sentido
Ser Portugal o lugar
Onde se encontre, a lavrar,
O Paraíso perdido
Que inda está para encontrar.


António Corrêa d’Oliveira


[ Vinte e uma das noventa e cinco quintilhas de Terra do Paraíso (1922), como foram reeditadas em Hora Incerta:Pátria Certa, 1948. ]