Sobre a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)
Tenho andado a adiar este post por falta de tempo. Mas é urgente debater, é urgente expor as nossas razões.
Começo por dizer que defendo a despenalização da prática da IVG e que (note-se!) seja permitido à mulher interromper a gravidez em condições que não prejudiquem a sua saúde se sentir que não pode levar avante a gestação do feto. Uma mulher, mesmo adolescente, só aborta se estiver plenamente convicta de que não pode levar a gravidez adiante. E nenhuma mulher o fará de ânimo leve, ao contrário do que Prof. Marcelo e outros apoiantes do sim nos querem fazer crer. (Dizer que há quem use a IVG como método contraceptivo é incorrer numa monstruosa desonestidade intelectual.)
No entanto, embora defenda que a mulher deve poder decidir livremente, não subscrevo as posições dominantes do "sim". Isto porque não aceito que o problema ético da IVG se limite à mãe e apenas tenha que ver com a liberdade individual desta. Sou pela despenalização, mas não ignoro que em cada aborto há uma vida que foi interrompida, um ser a quem foi cortada a oportunidade de viver. E, no entanto, problema é mais complexo.
A minha posição decorre, em primeiro lugar, da desarticulação entre a lei (e a “moral” burguesa) e a realidade. Se uma mulher está irredutivelmente determinada a abortar é porque ponderou bem a decisão. Nenhum homem pode saber o que é sentir que se está a gerar um ser como não pode saber o que deve ser abortar num vão de escada. (Sim, creio que uma parte desta problemática decorre do facto de os poderes dominantes – os microfísicos e os macrofísicos – desta sociedade estarem nas mãos dos homens.) O processo de interrupção da gravidez é certamente, em todas as etapas (ponderação, decisão, operação, remorso e culpa), um percurso muito, muito penoso. A mulher tem consciência disto e só passará por este duro processo se não encontrou outra saída, porque não havia outra saída! Isto para dizer que o aborto não desaparecerá como não desaparecerão as condições degradantes em que ele se pratica se o “não” ganhar em 11 de Fevereiro. E, se esse for o resultado do escrutínio, o aborto sobreviverá como problema social, problema de saúde pública e como problema de consciência. Não despenalizar é deixar tudo como está; e deixar tudo como está é péssimo.
O meu segundo argumento decorre do primeiro e prende-se com questões de (in)justiça social. Tendo em conta que uma mulher decidida a abortar (porque não havia outra saída!), abortará, é de uma profunda injustiça que a umas mulheres sejam dadas condições ideais para o fazer e a outras não… porque não têm dinheiro, porque não pertencem a famílias influentes. (O que pretendo aqui dizer é que a todas deviam ser dadas essas condições ideias.) Acresce que as segundas correm risco de vida, risco de terem graves lesões internas (fisiológicas e psicológicas) e de serem processadas judicialmente; as primeiras, não. Voltamos ao problema das desigualdades, que os defensores da penalização aceitam e promovem.
Há ainda dois aspectos que me entristecem muitíssimo em todo este debate. Em primeiro lugar, revolta-me assistir a argumentações falaciosas, demagógicas e estupidificantes que tanto o "sim" como o "não" promovem. Em segundo lugar, custa-me muito que nestes momentos críticos, de embate das placas tectónicas ideológicas do nosso Portugal, venham a emergir no terramoto das ideias gazes e jactos que demonstram que no nosso substrato psíquico permanece uma fortíssima mentalidade salazarista, conservadora, prepotente. É aquela mentalidade que não olha o outro como sujeito nem simpatiza (sym+pathos) com o sofrimento alheio; é a mentalidade egoísta dos que não cumprem a lei mas acham que o outro deve ser punido com punho de ferro; dos que acham que a vida dos outros se passa a preto e branco e que pode ser avaliada em polaridades maniqueístas. Triste vai o meu país que tristemente assim apodrece.
Um problema final. Não sou dos que acha que Portugal tem de andar atrás dos outros países. No entanto, se queremos ser um povo de mentalidade aberta, temos de nos colocar uma questão: o facto de todos os países civilizados já terem despenalizado o aborto (e de o assunto se ter tornado para eles pacífico) não poderá indicar que há justeza nesta posição, que ela representa um passo em frente no progresso social e humano dos povos? Se queremos debater seriamente esta questão teremos forçosamente de ter em conta a situação dos países “avançados”; ignorá-la é reincidir no autismo nacional do “orgulhosamente sós”.
Começo por dizer que defendo a despenalização da prática da IVG e que (note-se!) seja permitido à mulher interromper a gravidez em condições que não prejudiquem a sua saúde se sentir que não pode levar avante a gestação do feto. Uma mulher, mesmo adolescente, só aborta se estiver plenamente convicta de que não pode levar a gravidez adiante. E nenhuma mulher o fará de ânimo leve, ao contrário do que Prof. Marcelo e outros apoiantes do sim nos querem fazer crer. (Dizer que há quem use a IVG como método contraceptivo é incorrer numa monstruosa desonestidade intelectual.)
No entanto, embora defenda que a mulher deve poder decidir livremente, não subscrevo as posições dominantes do "sim". Isto porque não aceito que o problema ético da IVG se limite à mãe e apenas tenha que ver com a liberdade individual desta. Sou pela despenalização, mas não ignoro que em cada aborto há uma vida que foi interrompida, um ser a quem foi cortada a oportunidade de viver. E, no entanto, problema é mais complexo.
A minha posição decorre, em primeiro lugar, da desarticulação entre a lei (e a “moral” burguesa) e a realidade. Se uma mulher está irredutivelmente determinada a abortar é porque ponderou bem a decisão. Nenhum homem pode saber o que é sentir que se está a gerar um ser como não pode saber o que deve ser abortar num vão de escada. (Sim, creio que uma parte desta problemática decorre do facto de os poderes dominantes – os microfísicos e os macrofísicos – desta sociedade estarem nas mãos dos homens.) O processo de interrupção da gravidez é certamente, em todas as etapas (ponderação, decisão, operação, remorso e culpa), um percurso muito, muito penoso. A mulher tem consciência disto e só passará por este duro processo se não encontrou outra saída, porque não havia outra saída! Isto para dizer que o aborto não desaparecerá como não desaparecerão as condições degradantes em que ele se pratica se o “não” ganhar em 11 de Fevereiro. E, se esse for o resultado do escrutínio, o aborto sobreviverá como problema social, problema de saúde pública e como problema de consciência. Não despenalizar é deixar tudo como está; e deixar tudo como está é péssimo.
O meu segundo argumento decorre do primeiro e prende-se com questões de (in)justiça social. Tendo em conta que uma mulher decidida a abortar (porque não havia outra saída!), abortará, é de uma profunda injustiça que a umas mulheres sejam dadas condições ideais para o fazer e a outras não… porque não têm dinheiro, porque não pertencem a famílias influentes. (O que pretendo aqui dizer é que a todas deviam ser dadas essas condições ideias.) Acresce que as segundas correm risco de vida, risco de terem graves lesões internas (fisiológicas e psicológicas) e de serem processadas judicialmente; as primeiras, não. Voltamos ao problema das desigualdades, que os defensores da penalização aceitam e promovem.
Há ainda dois aspectos que me entristecem muitíssimo em todo este debate. Em primeiro lugar, revolta-me assistir a argumentações falaciosas, demagógicas e estupidificantes que tanto o "sim" como o "não" promovem. Em segundo lugar, custa-me muito que nestes momentos críticos, de embate das placas tectónicas ideológicas do nosso Portugal, venham a emergir no terramoto das ideias gazes e jactos que demonstram que no nosso substrato psíquico permanece uma fortíssima mentalidade salazarista, conservadora, prepotente. É aquela mentalidade que não olha o outro como sujeito nem simpatiza (sym+pathos) com o sofrimento alheio; é a mentalidade egoísta dos que não cumprem a lei mas acham que o outro deve ser punido com punho de ferro; dos que acham que a vida dos outros se passa a preto e branco e que pode ser avaliada em polaridades maniqueístas. Triste vai o meu país que tristemente assim apodrece.
Um problema final. Não sou dos que acha que Portugal tem de andar atrás dos outros países. No entanto, se queremos ser um povo de mentalidade aberta, temos de nos colocar uma questão: o facto de todos os países civilizados já terem despenalizado o aborto (e de o assunto se ter tornado para eles pacífico) não poderá indicar que há justeza nesta posição, que ela representa um passo em frente no progresso social e humano dos povos? Se queremos debater seriamente esta questão teremos forçosamente de ter em conta a situação dos países “avançados”; ignorá-la é reincidir no autismo nacional do “orgulhosamente sós”.
5 Comments:
Resp. ao 1º. Cada caso é uma situação existencial singular, quer por parte da mulher, quer nas circunstâncias pessoalmente vividas por ela, nesse momento da sua vida. Este é o plano da contingências variáveis, subjectivas, multímodas e mudáveis(o que é hoje aflição e desespero pode ser no futuro uma fonte de imprevista alegria para a mãe). Agora,nas condições objectivas da sociedade actual, será certo que, a priori, não havia outra saída? Não é certo, porque existem dezenas de associações que acolhem, acompanham e apoiam a mulher grávida que não quer abortar. E, posteriormente, a entrega para adopção, uma alternativa relativamente menos dificultada hoje pelo Estado no actual ordenamento jurídico.
Resp. ao 2º. Dar às mulheres pobres as facilidades e as condições das ricas, não parece que elimine o "mal" que todos dizem que o aborto é, seja feito em boas ou em más condições médicas. Pode torná-lo, sim, sanitariamente mais seguro para as pobres (sem garantia da privacidade que o clandestino sempre assegura melhor); além de que a despenalização pode facilmente induzir em muitos a crença de que é moralmente tolerável o que é legalmente permissível, em suma, que não um tão grande "mal" como se dizia. Esta última possibilidade, e as estatísticas disponíveis dos países ricos em que se liberalizou o aborto, de maneira nenhuma asseguram que a IVG não seja encarada de facto como o infalível contraceptivo de último recurso.
Em suma, quanto ao 1º, deixa-nos no plano da contingência, do que pode ser ou não ser o caso, ignorando que HÁ SOLUÇÕES socialmente disponíveis e favoráveis à perservação da vida; quanto ao 2º, não elimina mas torna mais extensível e acessível o que é sempre e necessariamente um mal: a morte de vida humana inocente e indefesa.
uma pequena reflexão...
sim, à penalização dos fumadores que prejudicam gravemente a saúde de milhares de fumadores passivos.
sim, à penalização dos fabricantes de armas que provocam a morte de milhares de pessoas em todo o mundo.
sim, à penalização dos condutores de automóveis que contribuem para as alterações climáticas matando milhares de pessoas por catástrofes "naturais" no mundo.
sim, à penalização dos donos das empresas de fast-food por nos provocarem as mais variadas doenças que matam milhares em todo o mundo.
sim, à penalização dos agricultores por usarem produtos químicos em excesso que poluem gravemente o ar, a água e o solo afectando a saúde e matando milhares de pessoas.
sim, à penalização das farmacêuticas que não testam devidamente os medicamentos e provocam a morte de milhares de pessoas.
sim, à penalização de todos os infractores ao código da estrada que matam ou incapacitam, milhares de pessoas.
sim, à penalização das indústrias que poluem o ar, o solo e a água, provocando várias doenças fatais em milhares de pessoas.
sim, à penalização dos produtores de gado que administram aos animais todo o tipo de químicos que irão causar variadas doenças em milhares de pessoas.
sim, à penalização de George Bush, que até agora já matou milhares de iraquianos e americanos.
sim, à penalização de todos os pais e mães que batem de forma bárbara nos seus filhos até à morte.
sim, à penalização de todas as mães que fumaram, beberam ou se drogaram durante a gravidez afectando de forma irreversível o feto.
sim, à penalização de todos os pais e mães que fazem dos seus filhos fumadores passivos.
... etc, etc, etc
gostava de ver todos (em especial os apoiantes do Não à despenalização) preocupados com estes e outros problemas com a mesma intensidade e dedicação com que se preocupam com a questão da despenalização do aborto...ou será que depois de nascermos deixamos de ser seres humanos? será que as crianças, uma vez fora do ventre materno, deixam de se inocentes e indefesas?
Você, caro Alexandre, vive dividido e, com a graça que Deus lhe deu, conseguiu focar a questão de forma quase imparcial. Ainda me vão acusar de "elogio mútuo", que se f...
Caro Z, tresleu as minhas palavras. Não fui de forma alguma imparcial. Defini-me claramente a favor da liberdade da mulher na decisão de fazer uma IVG. (Mais: despenalizar não chega; há que dar condições para a mulher poder interromper em segurança a gravidez.) Onde é que há aí imparcialidade?
Agora, acho que interpretou como "picadela de olho" da minha parte ao "Não" o facto de eu dizer que há num feto de 10 semanas uma vida em formação. Pois interpretou mal. Há de facto nesse feto uma vida em formação. Mas ainda assim, eu argumentei no sentido de defender a possibilidade de mulher poder decidir o que fazer, pelas razões que então aduzi.
Caro Alexandre, há palavrinhas levadas da breca, eu disse: quase imparcial e não imparcial. Não precisava de mais esclarecimentos.
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