Carta aberta aos socialistas do meu país
É certo que, desde há muito, algumas posições políticas nos separavam, mas nunca esta separação foi tão longe como agora e será, certamente, irreversível. Estivemos, desde sempre, do lado da democracia e dos seus valores, da solidariedade, da tolerância, do diálogo, da justiça social. Hoje, tudo que nos unia já não existe. Pelo menos é o que tem mostrado quer a prática quer as intenções dos socialistas ou, para ser mais preciso, o aparelho partidário. Estes valores sempre foram queridos às multidões de homens e de mulheres, valores pelos quais se bateram muitos dos vossos companheiros, com muito sacrifício. Quantos, pela defesa intransigente desses mesmos valores, não foram vítimas dos maiores vitupérios? Como pode ser possível que um partido com esse passado de luta, de história gloriosa, que lutou contra o fascismo e que nunca pactuou com regimes totalitários comunistas, militaristas, etc., venha agora vergar-se aos pés de outras formas de despotismo? Como pode ser possível que um partido que sempre defendeu a divisão democrática do poder, venha agora, pela máquina partidária, procurar a todo o custo concentrar todo o poder, num só homem, no líder do vosso partido?
Como pode ser possível que o partido, verdadeiramente fundador do regime democrático, que sempre procurou dignificar a Assembleia da República, venha agora, transformar a A.R. num mero órgão subserviente, sem opinião, que se limita a dar o seu aval acrítico às politicas injustas, discriminatórias do governo? Como pode ser possível que os tradicionais inimigos da democracia venham agora, num coro crescente, em discursos laudatórios, afirmar que o governo socialista é um governo corajoso? Onde estão os meus amigos socialistas, que se reclamavam herdeiros do pensamento de um José Fontana, de um Jaime Cortesão, de um António Sérgio? Não quero acreditar que se tenham transformado em funcionários dos interesses da economia ultraliberal. Receio, no entanto, e a prática deste governo parece confirmar, que o socialismo se tivesse transformado num instrumento de gestão da economia ultraliberal. Este socialismo, que se diz moderno, tem revelado, ao longo destes dois anos, uma verdadeira insensibilidade social, piorando a vida das classes mais desfavorecidas da sociedade, negando-lhes o direito à saúde, à justiça, à segurança, e, muito em breve, à educação. Pelo contrário, tem revelado, ao longo destes dois anos, apadrinhar e favorecer os sectores mais exploradores da sociedade portuguesa, aqueles que defendem as leis extremistas e terroristas laborais, aqueles que, sem pátria e sem aviso prévio, deslocam, a seu belo prazer, os capitais para outras partes do mundo.
Caros socialistas, hoje, ainda estão a tempo de recuperar o capital de esperança que os portugueses vos legaram, ainda há tempo de dignificar e respeitar a memória dos vossos antecessores socialistas. Ainda vão a tempo de salvar o partido e a democracia. Depois, não nos venham dizer: “não sabia”, “nunca ouvi falar”, “apenas, cumpri ordens”, etc. Amanhã, pode ser tarde demais.
5 Comments:
Bem dito, amigo Raimundo!
Pois eu acho muito injusto.
Caro Raimundo
Sottomayor Cardia dizia, com todo o seu sentido prático, que não se revia neste socialismo e uma espécie voadora revelou-me que ele já nem nas eleições votava neles.
Sentia ele já há algum tempo aquilo que você agora de forma tão clara denuncia?
Vivemos uma época de inversão de valores, os ricos são vistos como coitadinhos e protegidos (desgraçados que têm de viver em condomínios fechados com... tão poucos recursos ou pensava que era piscina, jardim e video vigiçância) e os outros marcadores para que não possam saltar os muros dos condomínios fechados.
Triste mundo. Mas vejo o exemplo da Suiça que nos relata edelweiss, por exemplo, para aí caminhamos inexoravelmente, com muita pena nossa.
Cumprimentos
Não há justificação. Nem no código do trabalho.
Desde o Outono que não falava pró Tonel -- quero crer que não é a mesma coisa que falar pró boneco -- mas não posso deixar passar a oportunidade de comentar esta "Carta Aberta"...
Devo começar por dizer que sempre fui, e continuo a ser hoje, um socialista, opção fundada na convicção arreigada que tenho de que em política a primazia deve, sempre, ser dada às questões sociais, i.e., às comunidades, grupos e organizações que compõem o tecido social, em detrimento dos meros interesses individuais.
Mas anos de reflexão levam-me a ter igualmente que admitir que sou, como Bernard Shaw, um socialista insociável.
Ressalvadas as excepções à escala histórica e antropológica, não acredito na inteligência das massas, não gosto de consensos maioritários e abomino a maior parte dos valores do povão -- sentimento quotidianamente exasperado e agravado pela circunstância de ter nascido português. Para contradição fundamental, não está nada mal.
Escapatórias?
Não deitei fora o menino com a água do banho com a queda do Muro, pelo que não passei a acreditar que a falência das distopias policiais do leste europeu provassem mais do que o falhanço dos seus oligarcas -- mas menos acredito, como tem passado desde então por doutrina canónica, que dois séculos de reflexão à esquerda se tivessem tornado de repente letra morta.
Não passei a comungar piamente da liturgia neo-liberal, que, de novo, só tem a magnitude da ganância e, de liberal, a sanha com que persegue as liberdades dos que se lhe opõem.
Não acatei o toque a reunir de uma certa esquerda, saudosa dos tempos do seu diktat incontestado.
E assim por diante, mas não pretendo fazer aqui nenhuma homilia.
Resta dizer, quanto ao socialismo -- que não existe hoje em Portugal e está moribundo no resto do continente enquanto expressão política -- que ele não morrerá enquanto princípio de reflexão e de acção política enquanto houver pelo menos um homem apostado em transcender a sua condição, não à custa da degradação e opressão do seu semelhante, mas pela conjugação inteligente do esforço individual em prol de um futuro melhor para todos e cada um. E quem pode dizer que não é isso o desejável?
À guisa de conclusão: o verdeiro socialismo consiste em não aceitar diferença alguma que nos apouque, nem igualdade que nos descaracterize.
Quanto ao mais, convém recordar que o verbo resistir só faz sentido conjugado na primeira pessoa...
Miguel A.
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