JOÃO DE ARAÚJO CORREIA
« Aquele conto que lembra a infinita tristeza de Tchekov, o Tchekov de “O Álbum”… » - diz João Bigotte Chorão, o crítico e ensaísta guardense que tão bem conhece e tem divulgado João de Araújo Correia. Não foi tanto a lembrada comparação que me fez seleccionar o conto, um dos mais curtos entre os habitualmente breves do nosso autor: apenas duas páginas, na 4ª edição dos Contos Bárbaros. Sobre esta vantagem para o jeito de trasladá-lo aqui, a mim antes me lembrou a medalha que, na mesma guerra, ganhou o outro soldado que homenageámos no passado 9 de Abril.
Mais dizia Bigotte Chorão, na Colóquio/Letras de Janeiro de1986:
«Se por escritor clássico entendemos aquele que pratica uma discreta arte de sugestão – uma arte de grande economia de meios em que a inteligência tempera a sensibilidade ou a ordem domina o caos -, poucos escritores vemos aí que mereçam como João de Araújo Correia esse qualificativo de clássico. Clássico pela clareza, o rigor, o senso da medida, a ironia que desenruga o rosto da vida. A tragédia e a comédia humanas deu-as ele em traços subtis, em contos que não são bárbaros porque o autor, poeta da prosa, soube contornar as arestas mais agressivas da vida. Nunca o espectáculo, não raro brutal, dado pelo homem o tornou irreconciliável com a nossa condição. Sem ilusões sobre ele, defendia-se porém de rebaixá-lo aos olhos do leitor. (…) Mestre da língua pela clareza, a pureza, a correcção, reconhece-se, na prosa de João de Araújo Correia, a herança clássica de Bernardes e de Camilo, a que veio juntar-se o património da arte popular. Porque próxima da vida, e não somente livresca, a prosa de João de Araújo Correia é muito coloquial (…). Distingue-se ela por extrema concisão, e é tão leve que diríamos as palavras mal pesarem no papel, aladas e translúcidas como são.»
Sobre “arestas agressivas” e “espectáculo não raro brutal”, permito-me lembrar o leitor que Araújo Correia foi médico rural ao longo de mais de cinquenta anos. A compassiva simpatia do homem para com os seus semelhantes (aliás extensiva aos animais, que deixou de caçar, e às árvores, de que sempre cuidou e incitou a plantar), fez que o escritor, hábil em apreciar com olho clínico a convivida existência de todos os seres vivos, não precisasse mais do que a “discreta arte da sugestão” e os “traços subtis” duma ironia sem ressaibo de troça ou sarcasmo. Quanto à “clareza, rigor e senso da medida”, começam logo na pontuação das frases; se o leitor a estranhar, por aí pode aferir o quanto terá a sensibilidade afectada pela frenética e caótica discursividade da prosa mal pontuada (ou até sem pontuação nenhuma) dos escritores que andam num virote, desabalados aos ritmos da vida moderna. A pontuação de Araújo Correia marca-lhe pausas, ritmos, cadências, vagares de um outro mundo - o de quem sabia esperar, ver, rever, contar em todos os precisos tons na escala que dá a pensar; e se a sentir, se não maçadora, muito escrupulosa e carregada, desconte-lhe na sucintez duma condensação que não pesa e consegue ser, de facto, “alada e translúcida”.
Destas magistrais regras, que não descaíram em uma só excepção, se não afastou o grande mestre do conto, e é exemplar o que segue.
A MEDALHA
« Descia a rua da Picota pelo entardecer. Curvava-se em profunda vénia ao Santo Passo, negro buraco habitado por Jesus, furava através do povo lento que recolhia ao lar, e lá ia, pelo largo da fonte adiante, direito ao seu quartel.
Fora soldado. Livre da mochila, veio a ser com os anos o planeta do sítio. Planeta quer dizer astrónomo. Antes de entrar em casa, olhava os quatro cantos do céu. Varria-o como quem varre uma sala. Punha a linguita de fora, piscava um olho. Analisava o cosmos como qualquer sábio antes de se deitar.
Nem só a paixão dos astros lhe nutria o coração. Depois de ceia, comida só e sempre magra, recordava os tempos idos. A vida na tropa, ali, diante da lareira acesa, revivia-a toda. Lembravam-lhe as grandes jornadas, feitas a pé, marche-que-marche, em estradas sem fim. Lembravam-lhe, cara por cara, quantas moçoilas se haviam apaixonado por ele e pela sua farda azul. Lembravam-lhe os dias de parada, em que estivera quedo, à torreira do sol, horas e horas, sem pestanejar. Lembravam-lhe os episódios cómicos, e todas as noites rebentava a rir diante do brasido. Uma vez, estando de sentinela à porta de armas, viu aproximar-se da guarita um capitão. Olá! Vens de capote? Já sabes que não entras. A ordem que tenho é não deixar entrar cá dentro ninguém de capote, ainda que seja o rei. Faça alto, meu capitão! Saiba Vossa Senhoria que não pode entrar. Está doente? Ora! Tanto se me dá que esteja doente como são. De capote é que não entra. E não entrou! O homem a remeter, e eu, zás! Furei-lhe a cara com a baioneta. Prestei-lhe um grande serviço, porque o homem trazia um tumor na cara a pedir furo. Espirrou matéria, que enchia uma panela. E não tive castigo! Fui até louvado. Aquilo é que eram tempos!
Tinha saudades. Cinco anos de correias, nenhuma brincadeira. Outrora, a disciplina era de ferro. Ele, contudo, criara amor ao dever. Para o certificar, bastaria a medalha. Abria a arca de pinho. Numa saquita surrada, cujo atilho ele desatava, tremendo, ela lá estava a bom recato, para se não estragar. Linda como uma jóia! Nem uma estrela comovia tanto o planeta. Palpava-a, soprava-lhe como a um veludo e beijava-a quando já as lágrimas lhe regavam o bigode crespo.
Todas as noites se repetia a cena melancólica. Assim caducou o velho militar… Também, no baú que tinha sobre o dorso, pesava a poeira dos oitenta anos. Como candeia que se apaga, foi morrendo a pouco e pouco. Ninguém lhe cerrou os olhos. Veio um primo apoderar-se-lhe do espólio. Ao remexer com a gula a podre arca de pinho, deu tento da medalha. Virou-se a um pequenito e disse: Manel, toma pra brincares.
Ainda o acompanhamento tilintava ao longe. Na tarde cinzenta, ao meio da rua, brincava a canalha suja. A pequena rodela acendeu um fogacho nas almas infantis. Breve se apagou. Vinha a descer a noite. Na lama da rua, distante do dono, sepultava-se também, já esquecida, a medalha. »
Mais dizia Bigotte Chorão, na Colóquio/Letras de Janeiro de1986:
«Se por escritor clássico entendemos aquele que pratica uma discreta arte de sugestão – uma arte de grande economia de meios em que a inteligência tempera a sensibilidade ou a ordem domina o caos -, poucos escritores vemos aí que mereçam como João de Araújo Correia esse qualificativo de clássico. Clássico pela clareza, o rigor, o senso da medida, a ironia que desenruga o rosto da vida. A tragédia e a comédia humanas deu-as ele em traços subtis, em contos que não são bárbaros porque o autor, poeta da prosa, soube contornar as arestas mais agressivas da vida. Nunca o espectáculo, não raro brutal, dado pelo homem o tornou irreconciliável com a nossa condição. Sem ilusões sobre ele, defendia-se porém de rebaixá-lo aos olhos do leitor. (…) Mestre da língua pela clareza, a pureza, a correcção, reconhece-se, na prosa de João de Araújo Correia, a herança clássica de Bernardes e de Camilo, a que veio juntar-se o património da arte popular. Porque próxima da vida, e não somente livresca, a prosa de João de Araújo Correia é muito coloquial (…). Distingue-se ela por extrema concisão, e é tão leve que diríamos as palavras mal pesarem no papel, aladas e translúcidas como são.»
Sobre “arestas agressivas” e “espectáculo não raro brutal”, permito-me lembrar o leitor que Araújo Correia foi médico rural ao longo de mais de cinquenta anos. A compassiva simpatia do homem para com os seus semelhantes (aliás extensiva aos animais, que deixou de caçar, e às árvores, de que sempre cuidou e incitou a plantar), fez que o escritor, hábil em apreciar com olho clínico a convivida existência de todos os seres vivos, não precisasse mais do que a “discreta arte da sugestão” e os “traços subtis” duma ironia sem ressaibo de troça ou sarcasmo. Quanto à “clareza, rigor e senso da medida”, começam logo na pontuação das frases; se o leitor a estranhar, por aí pode aferir o quanto terá a sensibilidade afectada pela frenética e caótica discursividade da prosa mal pontuada (ou até sem pontuação nenhuma) dos escritores que andam num virote, desabalados aos ritmos da vida moderna. A pontuação de Araújo Correia marca-lhe pausas, ritmos, cadências, vagares de um outro mundo - o de quem sabia esperar, ver, rever, contar em todos os precisos tons na escala que dá a pensar; e se a sentir, se não maçadora, muito escrupulosa e carregada, desconte-lhe na sucintez duma condensação que não pesa e consegue ser, de facto, “alada e translúcida”.
Destas magistrais regras, que não descaíram em uma só excepção, se não afastou o grande mestre do conto, e é exemplar o que segue.
A MEDALHA
« Descia a rua da Picota pelo entardecer. Curvava-se em profunda vénia ao Santo Passo, negro buraco habitado por Jesus, furava através do povo lento que recolhia ao lar, e lá ia, pelo largo da fonte adiante, direito ao seu quartel.
Fora soldado. Livre da mochila, veio a ser com os anos o planeta do sítio. Planeta quer dizer astrónomo. Antes de entrar em casa, olhava os quatro cantos do céu. Varria-o como quem varre uma sala. Punha a linguita de fora, piscava um olho. Analisava o cosmos como qualquer sábio antes de se deitar.
Nem só a paixão dos astros lhe nutria o coração. Depois de ceia, comida só e sempre magra, recordava os tempos idos. A vida na tropa, ali, diante da lareira acesa, revivia-a toda. Lembravam-lhe as grandes jornadas, feitas a pé, marche-que-marche, em estradas sem fim. Lembravam-lhe, cara por cara, quantas moçoilas se haviam apaixonado por ele e pela sua farda azul. Lembravam-lhe os dias de parada, em que estivera quedo, à torreira do sol, horas e horas, sem pestanejar. Lembravam-lhe os episódios cómicos, e todas as noites rebentava a rir diante do brasido. Uma vez, estando de sentinela à porta de armas, viu aproximar-se da guarita um capitão. Olá! Vens de capote? Já sabes que não entras. A ordem que tenho é não deixar entrar cá dentro ninguém de capote, ainda que seja o rei. Faça alto, meu capitão! Saiba Vossa Senhoria que não pode entrar. Está doente? Ora! Tanto se me dá que esteja doente como são. De capote é que não entra. E não entrou! O homem a remeter, e eu, zás! Furei-lhe a cara com a baioneta. Prestei-lhe um grande serviço, porque o homem trazia um tumor na cara a pedir furo. Espirrou matéria, que enchia uma panela. E não tive castigo! Fui até louvado. Aquilo é que eram tempos!
Tinha saudades. Cinco anos de correias, nenhuma brincadeira. Outrora, a disciplina era de ferro. Ele, contudo, criara amor ao dever. Para o certificar, bastaria a medalha. Abria a arca de pinho. Numa saquita surrada, cujo atilho ele desatava, tremendo, ela lá estava a bom recato, para se não estragar. Linda como uma jóia! Nem uma estrela comovia tanto o planeta. Palpava-a, soprava-lhe como a um veludo e beijava-a quando já as lágrimas lhe regavam o bigode crespo.
Todas as noites se repetia a cena melancólica. Assim caducou o velho militar… Também, no baú que tinha sobre o dorso, pesava a poeira dos oitenta anos. Como candeia que se apaga, foi morrendo a pouco e pouco. Ninguém lhe cerrou os olhos. Veio um primo apoderar-se-lhe do espólio. Ao remexer com a gula a podre arca de pinho, deu tento da medalha. Virou-se a um pequenito e disse: Manel, toma pra brincares.
Ainda o acompanhamento tilintava ao longe. Na tarde cinzenta, ao meio da rua, brincava a canalha suja. A pequena rodela acendeu um fogacho nas almas infantis. Breve se apagou. Vinha a descer a noite. Na lama da rua, distante do dono, sepultava-se também, já esquecida, a medalha. »
2 Comments:
Ola, quero agradeçer pelo que está aqui escrito. O meu bisavô era joao de araujo correia, e camilo de araujo correia meu tio avo. Do fundo do coração obrigada.
Belíssimo conto!
Parabéns pela lembrança e pela escolha.
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