“ACESA NO ESPÍRITO SANTO”…
No anterior falei de naufrágios e nos seguintes continuarei a falar de náufragos, a contar despojos, perdas e danos. Com tão lúgubres perspectivas, andei cuidando no que poderia salvar o leitor de se enrolar nos pastelões de prosa e afogar no tédio da leitura destes postais. Onde, a bóia ou âncora salvadoras? E eis que levanto os olhos para a estante de leitura que tenho sobre a mesa em que escrevo… E lá está, sempre aberto, o infalível previsor do tempo, o prestante e fiel conselheiro de tão bons conselhos… - o Borda d’ Água. O “reportório útil a toda a gente” socorre-me a memória lembrando que hoje, 4 de Julho, é dia dedicado à rainha Santa Isabel. A quem? – perguntará o meu jovem leitor, que já vai com 14-16 anos de estudante atento de História na nossa escola pública e nunca ouviu falar desta rainha portuguesa do séc. XIV, esposa del-rei D. Dinis. Pois irá agora ouvir mais. O meu “verdadeiro almanaque” acrescenta ao nome da soberana este peremptório e sibilino título: “Mestra da Ordem Espiritual da Portugal”. Nada menos! Esfrego os olhos e volto a olhar: - é tal qual, pode crer. Crer? E por que não? Se o meu Lunário acerta sempre, tanto no “tempo brusco” como no “tempo instável”, tanto no “lavrar dos canteiros” como no “cobrir cepas”(na Lua crescente), por que não acertaria em… tudo o mais?
Bem, mas como dar conta do oráculo? O que pode significar isso de uma “Ordem Espiritual” portuguesa? Em algumas escolas públicas que eu frequentei, era público e notório que D. Isabel ligou indelevelmente o seu nome à fundação da igreja e hospital do Espírito Santo na sua vila de Alenquer; e que, nesta terra, instituiu o cerimonial do “Império” e uma “procissão da candeia” nas festas dedicadas ao Divino, entre os domingos da Ressurreição e do Pentecostes. Pode ser que ainda aqui à beira deste Tonel façamos um bodo, com Agostinho da Silva convidado à mesa. Para já, fixe o leitor esta imagem da “procissão da candeia”. –
Era na noite de véspera do domingo de Pentecostes; uma daquelas noites de negridão medieval em que ainda passávamos muito bem sem luzes eléctricas, só alumiados da Lua e das estrelas. Pois era essa a noite em que, ao ritmo da procissão, se ia lentamente desdobrando um rolo de cera previamente abençoada por sobre os muros da vila, e rodeando-a toda, desde a igreja do alto convento de S. Francisco até cá baixo à igreja de Triana, com as pontas presas aos sacrários de ambas as igrejas. E à medida que se ia desenrolando ia-se acendendo, e o lume difundindo por todos os cantos… - “A cada canto seu Espírito Santo”! Da encosta fronteira ao lugar, na escuridão da noite, esse fio de luz estendido, envolvente, desenhando como uma coroa de fogo assente na vila… - que bonito espectáculo seria de ver!
Não sei se a nossa Isabel era “mestra”. Julgo saber que se contentaria com ser adepta dum Poder Real que exerceu soberanamente em face dos virtuais e desvirtuados poderes dos mestres e senhores deste mundo. E para o demonstrar ao leitor, não preciso mais que o resto deste postal. Mas não seja eu a dar-lhe provas. Venha alguém que viveu mais próximo desses tempos e recolheu tradições coevas de pessoas e acontecimentos: o cronista-mor do Reino, Rui de Pina. –
« Era em suas palavras mui mansa e em suas obras mui conforme a toda humildade sem algum alevantamento de soberba, de maneira que a graça do Espírito Santo, de que era de todo acesa, causava em sua alma um louvado assossego e grande devoção, com que os dias que a Igreja mandava guardar, ela, sem quebra de algum, os jejuava todos a conduto, sem comer mais que uma só vez e, além disso, fazia jejuns de pão e água todas as sextas-feiras do ano e vésperas do dia de Nossa Senhora (…). »
De seu natural, a homónima sobrinha de Santa Isabel da Hungria desde menina que manifestava a soberana vontade de jejuar deste mundo, para conquistar depressa outro a que se chega pelo direito caminho andado por Francisco e Clara de Assis. Mas, sem nenhum “alevantamento de soberba”, como cumpria, submetia-se filialmente às conveniências das políticas humanas para casar com el-rei Dinis. Este, ao invés, ia “vencido da deleitação da carne” a fazer trovas e filhos fora do casamento. Mas a soberana Isabel “não mostrava receber por isso paixão nem escândalo algum, não perdia a devoção e exercício de rezar e encomendar-se a Deus”; antes “não tocada das dores e paixões tão comuns a mulheres” cuidava do mantimento e boa educação dos bastardos, a quem prodigalizavas desvelos de mãe. Eram, de facto, “virtudes para outras mulheres não costumadas” e que “vendo-as fazer tão sem paixão à rainha sendo muito moça, causavam a todas mui grande maravilha”. E não menor foi verem el-rei, envergonhado de suas fraquezas próprias, tornado ao “verdadeiro e direito caminho” do respeito que devia a si e a sua Esposa.
Mas vejamos um entre outros casos de ainda maior virtude, porque não só de “outras mulheres não costumada”. O leitor menos jovem lembra-se de que um dos ritos do velho cerimonial monárquico era o “beija-mão real”, melhormente dito uma como prova real com que os súbditos de joelhos se convenciam pelo tacto que seus soberanos eram pessoas de carne e osso como eles. Pois veja agora os reais efeitos da soberana força de que a Rainha Santa “era de todo acesa”:
« E na Semana Santa, na Quinta-Feira de Lava-Pés, em lavando a treze mulheres pobres envergonhadas, uma delas acertou que tinha um pé comido de praga e dois dedos afistulados que estavam para cair. Depois que a Rainha lhe lavou o são, ela escondia o doente, escusando-se por seu mal, e forçada dos rogos e desembargos da Rainha lho mostrou; e não somente o lavou mansamente, mas humildosamente o beijou na própria chaga e, depois que a todos deu de comer e vestir, como tinha por costume, em se saindo do Paço aquela mulher doente, indo na companhia das outras, se achou de todo sã. »
O quê, o meu leitor não ficou convencido? Não acredita? Pois, são cousas lá da “Idade Média”, e nós, o leitor e eu, vamos de passo travado para a extrema da Idade Extrema, não é?... Então não sei que mais lhe diga e que faça, senão socorrer-me outra vez do fiel Borda d’ Água. Diz-me ele que, no fim deste mês de Julho, terei “153 dias a viver”. Então é tempo de empregar melhor o tempo: vou plantar rabanetes, repolho e salsa!
[ Fica uma gravura rara do gravador João Cardini, do tempo em que o pobre e boníssimo rei D. João VI criava a Ordem da Rainha Santa Isabel, nos princípios do XIX. Tinha uma bela insígnia com uma ainda mais bela divisa: SOLATIO PAUPERUM (Consolação dos Pobres). ]
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