terça-feira, setembro 23, 2008

A "MORTE DE PORTUGAL" ( I )




Sem temores de desabamento das falésias, aninhadas à beirinha do grande oceano tão convidativo a lançar-nos à aventura do que for e vier – o por vir -, as branquinhas Azenhas do Mar não me parecem o melhor sítio para esmoer águas passadas e turvadas de melancolias. Contudo, talvez por ser confessadamente um “ensaiozinho reflexivo de horas nocturnas”, o ensaísta Miguel Real não se coibiu de assinar daí, a 23 de Setembro de 2007, um texto que intitulou “A Morte de Portugal”, publicado em livro com o mesmo título no mês seguinte por uma editora portuense. O “ensaiozinho” ocupa as primeiras 59 das 115 páginas de texto do livro.

Nele, é seu expresso intento « demonstrar que a constelação cultural e civilizacional por que emergiu a realidade histórica designada “Portugal”, enquadrada em quatro complexos culturais abaixo enunciados, atingiu o seu limite de esgotamento – menos por efeito de um decadentismo político (temos vivido em plena decadência desde D. João III) e mais por causa de um fenómeno de acentuadíssima descristianização e desumanização ética da sociedade e de uma rapidíssima submersão social numa tecnocracia científica anónima que nivela as nações, metamorfoseando-as em regiões singulares de uma futura supranacionalidade europeia, comandada por títeres janotas que transfiguram a nobre arte política numa cinzenta cadeia técnica de raciocínios causais [sic] – e está a chegar ao fim (…). » Aqui temos num estirado parágrafo a tese e todos os motivos para ficarmos sem fôlego. Em nota de pé de página, acrescenta que este “chegar ao fim (… ) em História, não significa desaparecimento; antes uma transformação lenta, prolongada por mais de um século.» Será “lenta”, mas sem excluir no limite a tal “submersão rapidíssima”...

De notar que Miguel Real fala em “quatro complexos culturais”. A cada um deles dedica o autor cada um dos restantes capítulos do livro, e quais sejam eles é o que o leitor interessado ficará a saber se o ler. A tese enunciada supra exprime um sentimento difuso que, nas últimas décadas, outros já ponderaram em termos reflectidos: lembro por todos o notável letrado portuense Amorim de Carvalho e o último livro que nos deixou: O Fim Histórico de Portugal, publicado em 1976. O mesmo ano em que vimos Miguel Torga escrever: « Começo a temer que estejamos no fim da nossa História.» Estávamos a dois anos daquela data derradeira que aparece num famoso “horóscopo” já aqui citado. Mas cabe lembrar que o nosso Poeta e perito astrólogo já por 1915 sentenciava peremptório: « Não há Portugal: há uma mistura de “estrangeiros do interior” a governar-nos e a estropiar-nos o resto do que somos.»

Se o leitor e eu não cremos possível razoadamente assentar firme juízo em tão aéreos e alevantados castelos de “constelações culturais e civilizacionais”, o que fazer com a tese? Pois analisá-la nos seus termos, conferir com ela os nossos próprios sentimentos e ideias, e ver o que pragmaticamente se pode fazer com ela na vida individual e colectiva. Vejamos um exemplo só, por hoje; a questão é das que transcendem, se não um “ensaiozinho”, por certo que muito um postalzinho de blogue.

Um ponto interessante da tese é o “menos por efeito de um decadentismo político”. De facto, o sentimento de ver a pátria “metida no gosto da cobiça e da rudeza / de uma austera, apagada e vil tristeza” vem pelo menos do Épico, aqui concorde com o seu grande contemporâneo Sá de Miranda. Deste, afastado da Corte em terras de Basto, diz Miguel Real, a págs. 43: «vivendo na solidão e no silêncio político uma espécie de auto-culpabilização ou expiação do que Portugal poderia ser ou ter sido (tendo todas as condições para isso), mas não é ou não foi devido à brutalidade da rapinagem económica e especulativa das classes económicas intermédias e da funda ignorância histórica e cultural das elites portugueses.» Seriam estas a “gente dura e endurecida” a que Camões se doía de falar. Porém, se recuarmos à pág. 37 lemos: « Com a centralização régia de D. João II, a transformação da empresa dos Descobrimentos em empório comercial e o Império concebido como simples estratégia militar internacional, nasce o primeiro momento do divórcio…» Recuamos, pois, de D. João III a D. João II. E, por falar em “divórcio”, terá sido mesmo o “primeiro”? Então e o “divórcio” entre o infante regente D. Pedro e os senhoriais que lhe opuseram D. Afonso V, até ao sanguinoso desfecho de Alfarrobeira? E entre os partidários de D. Beatriz e os de D. João, Mestre de Avis? Entre D. Afonso IV e o filho e familiares de D. Inês de Castro? Entre D. Dinis e o filho D. Afonso IV? Entre D. Afonso III e os parciais fiéis a D. Sancho II? Entre D. Sancho II e os bispos? Entre D. Sancho I e as irmãs? Entre Afonso Henriques e sua mãe? Tudo divórcios e todos litigiosos. Eis um facto muito interessante da nossa História, e poucas vezes sublinhado: - é que esta nação pequenina e aparentemente coesa em Estado independente há quase nove séculos, tem vivido desde as origens em constante conflito interior e mais ou menos aberta guerra civil. Até hoje, aos nossos tempos dos “estrangeiros do interior a estropiar-nos o resto do que somos”. Também aqui assoma, noutro sentido, o “complexo viriatino” de que fala Real, se lembrarmos, a propósito, que o lusitano Viriato terá morrido às mãos de lusitanos e não dos romanos.

Portanto, e para já, um ponto a fixar. – Temos sentimentos de “decadência” desde há pelo menos cinco séculos. E desde há nove temos vivido sempre em conflitos domésticos adentro da nossa “pequena casa lusitana”. E cá estamos, cá continuamos. Queixosos e sempre mais ou menos zangados uns com os outros. Parece-me que há uma lição importante a tirar daqui… no próximo postal.

Entretanto, não deixemos de salientar o ponto mais interessante – e preocupante – da tese: a desumanização ética e a tal “rapidíssima submersão…” Aqui, sim, acho eu que Miguel Real deu rebate justo, e temos mais ameaçadores entonos do que nos periódicos repiques de finis patriae. O que está em causa é mais do que a naturalidade portuguesa: - é a natureza humana.


[ Nigel Parker fotografou uma árvore, não a floresta… ]