quinta-feira, outubro 23, 2008

O “FIM HISTÓRICO DE PORTUGAL”



Todas as nações são mistérios.
Fernando Pessoa


Ponho ponto final nesta série de postais sobre o que somos e como estamos, que pode ser só acerca de um lindo nome: Portugal. – Tão bonito nome! Que o leitor amigo perdoará eu me permita pronunciar, conversando em família, com prosódia pouco comum, e só não lhe digo como é porque, se o leitor não pertence à nação portuense e tem uma aborrida susceptibilidade a um certo clube futebolístico… - decerto me não perdoaria. – Mas, digo que também o Porto é uma “nação”? Dizem que sim. Contudo, fique descansado que eu não sou tão visceralmente (tripeiralmente) portuense a ponto de rebuscar vetustos pergaminhos de excelência nacionalista sobre os “mouros” lisboetas. Isto são cá maneiras de quem ficou com as tripas retribuir a quem levou os lombos, e nos pagou a generosidade com remoques brejeiros… É também a maneira de sublinhar a tão extraordinária diferença de carácter e estilos entre estes dois lugares da beira-Atlântico, afinal distanciados por relativamente poucos quilómetros: o Porto macho e a mulher (boa) que é Lisboa.

É claro, não esqueço que o nome “Portugal” vem do nosso Porto, mas não se sabe se o Portus Cale não era Gaia, e os gaienses já não são bem, bem os portuenses (uma inefável diferença análoga dos almadenses para os “alfacinhas”). Gaia até seria mais importante, e tanto que o (talvez) mais antigo lugar e origem do nosso burgo – Miragaia – lhe pediu o nome; era o Castrum Novum suevo, assim chamado para se distinguir do veterum que lhe ficava diante. Por outra parte, a vindicação de tais longevos pergaminhos levar-nos-ia para fora das fronteiras da “Lusitânia”, esse famoso e fabuloso alfobre étnico dos portugueses… Ora, nesse sentido, aquele maravilhoso altiplano entre o Caramulo e a Estrela, centrado na “cidade de Viriato”, poderia a justo título reivindicar mais raciais purezas! Mas, essa capital – Viseu -, era terra de “Lusitanos” (cuja capital era a estremenha "espanhola" Mérida) ou dum outro povo, os chamados “Vaseus”?... Lembra-me que já o nosso humanista e patriota Fernão de Oliveira, no séc. XVI, o primeiro autor de uma Gramática do português, o primeiro autor de uma (com este título) “História de Portugal” refutava a lusitanomania dos seus coetâneos humanistas com bons fundamentos geográficos. Para ele, os portugueses eram muito mais antigos: eram filhos de Túbal, netos de Noé e do Dilúvio. (Não foi o primeiro a pensar assim.) Trocando a arca pela barca, teria navegado e chegado do sul àquele ameno abrigo onde está Setúbal, - a primeira cidade portuguesa… Ora, neste local e nestes primeiros tempos pós-diluvianos, não ficamos longe da Atlântida e da gente da borda d’água, por onde vimos navegar a imaginação do sr. general João de Almeida.

Uma tarde, junto com alguns amigos que nos reuníamos às vezes sob as copadas, odoríferas sombras da quinta da Macieirinha, em volta duns cálices do belo fino, veio a pelo lembrar tantos dos que foram de aqui atraídos a Lisboa e, descontentes ou traídos da boa, se lançaram mais longe à procura de melhor. Entre outros, lembramos o erudito letrado digno de seus mestres Basílio Teles e Sampaio Bruno, o autor suposto no título deste postal – Amorim de Carvalho (1904-1976) -, título da última obra que escreveu. Este republicano conservador da República abortada no 31 de Janeiro de 1891 – a qual nada tinha com a mera substituição dos comedores partidos monárquicos pelos não menos vorazes partidos republicanos, nem com demagógicas inflamações anti-clericais – mantivera-se fiel aos ideais ultramarinistas das primeiras gerações republicanas, que tinham as colónias como “território sagrado da Pátria”. Para Amorim, a vergonhosa debandada de 1974-75 marcou para Portugal – sem a Índia, sem o Brasil e agora sem África – o fim da sua História como Estado com autonomia política viável. A causa que teria levado a nação a um tão desastroso efeito radicava socialmente na acção das elites desnacionalizadas. Amorim de Carvalho tem muito de prestável a dizer-nos com a sua teoria das elites, mas, apesar do seu interesse sociológico, parece-me ainda muito tributária destes dois pontos: uma excessiva fixação no político; e é mais uma variação sobre a velha polémica entre nacionalistas e “estrangeirados”. Ora, digo eu, nem o político (o carácter político) tem de marcar a essência de uma elite sociológica; nem os “divórcios” entre categorias sociais ou ideológicas são necessariamente relevantes para a “decadência” ou o “fim” da nossa nação portuguesa, como sugeri noutro dia.

Aos amigos da ocasional tertúlia levantava eu (e ergo agora!) um cálice do generoso duriense, dizendo-lhes que este nosso vinho tão português que bebíamos talvez nunca tivesse sido tão bom como o temos hoje; que, em todo o caso, seria muito diferente há séculos atrás (antes do XVIII não era aguardentado). E não sem pequeno escândalo disse-lhes também que, para mim, uns muito bons portugueses de hoje eram… holandeses! É claro, tive de me explicar: uns holandeses que há cerca de trinta anos vieram novos para cá, correram a nossa terra de lés a lés, por ela se apaixonaram e por cá casaram e lhes nasceram e criaram filhos; uns que, na Beira Alta, quase que só por suas mãos têm recuperado ou construíram de raiz casas que conservaram cuidadosamente os típicos materiais e traça beirã; uns que falam português e se interessam pelas nossas coisas muitos mais e melhor que muito por cá nados e que por cá nadam parece que só para afogar os compatriotas.

Leitor paciente, eu disse que punha fim a uma série de postais, não a Portugal. Continuaremos.


[ Continuamos?... Mas, de que maneira, em que estado? Nada, neste apontamento e nos anteriores, pretende fazer esquecer notícias com esta: « O consumo de medicamentos ansiolíticos, hipnóticos, sedativos e antidepressivos não pára de aumentar em Portugal.» Há poucos anos éramos os segundos maiores consumidores na EU; agora, esta notícia do mês passado não diz se já somos os primeiros. Nem fala das outras drogas. Vamos indo assim. A gente, psicologicamente instável, como meteorologicamente o tempo; a terra, 36% desertificada, infértil e envelhecida, como a gente. Etc.. E o demais que nos informam as agências noticiosas. Mas os jornais dizem pouco e repetem muito. Tal como nós, os “portugueses”, com este ou outro nome, vimos de mais longe, o nosso maior problema é muito mais antigo e não é mais (se alguma vez foi) essencialmente político nem nacional: é um problema essencialmente do (que é ser) humano e, portanto, um problema universal. Os mesmos jornais se vão apercebendo e preparando os leitores para ele.

Entretanto, ponhamos os olhos em cima - em alto! - e deixemos o nosso emblema em boas mãos… ]