"Coimbra, 15 de Novembro de 1951"
« Digam lá o que disserem, o resultado é o mesmo: a tragédia das religiões é que o nosso tempo não tem mais problemas religiosos. Ninguém procura soluções divinas para as dificuldades que nos atormentam. Cada homem, cada povo, cada assembleia internacional nada mais pretendem do que encontrar saídas humanas para as grandes inquietações humanas. E discutem-se os meios técnicos, económicos, políticos, etc., etc., que possam resolvê-las, e não meios religiosos. Noutras idades, quando graves motivos de ordem material aconselhavam expedições de carácter guerreiro, era sob a bandeira da Fé que elas se faziam. O céu, mesmo que se tratasse de pimenta ou de canela, impunha-se às consciências de tal maneira, que só em seu nome se podia combater. Agora ninguém pensa sequer em doirar a pílula com a vida celeste. Doira-se com libras, com dólares, ou então com palavras terrenas que falam de ideologias terrenas. De resto, as próprias igrejas procedem de igual modo. Há uma tão real evidência de chão no conteúdo das orações que fazem, que o além mal se vislumbra. Não digo que o homem deixasse de ter angústias metafísicas. Tem-nas, e possivelmente mais exacerbadas do que nunca. Mas são estritamente de ordem pessoal. A igreja, como morada de transcendência e redil materno do rebanho, deixou de ter o sentido profundo doutrora. A sede dum clube ou dum partido substituiu-a, parece que irremediavelmente. E cada qual salva a sua alma na solidão. Como forças colectivas capazes de semear o mundo de catedrais ou de cruzadas, as religiões estão mortas. »
Miguel Torga, Diário, vol. VI.
Miguel Torga, Diário, vol. VI.
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